Delírium Tropicalis
Contos

Delírium Tropicalis

por Ricardo Gnecco Falco 

Avistou a mesa recém-liberada do outro lado do salão.

O restaurante estava completamente lotado. Assim como todo o centro da cidade; as ruas, calçadas, galerias… Tudo infestado de gente, indo e vindo de ou para algum lugar. O metrô que o trouxera pela manhã; também por inteiro tomado. O corredor do prédio onde trabalhava, o elevador, a portaria…

Lotados.

Era plena hora do almoço. Tinha seguido em fila indiana pelo habitual caminho, rumo ao seu restaurante preferido; onde se lembrava das pilhas de relatórios que enchiam sua sala, tornando-a ainda menor do que já era. Um cubículo sem janela e sem graça, perdido em algum prédio próximo dali.

Também lotado.

Papéis esperando por sua volta. O serviço acumulado aguardando seu retorno do almoço. O ponto eletrônico, quase escondido pelas caixas de papelão amontoadas no canto da parede, registrando com esmero e empáfia seu curto período de liberdade…

De vida.

Aquele, portanto, seria talvez o único momento só dele no dia; que a esta altura, inclusive, já avançava a passos largos rumo a segunda metade. E como voavam os setenta e dois minutos de intervalo contidos entre as duas eternidades por ele experimentadas todo santo dia, repetidamente!

Repetidamente…

Driblando as bolsas dependuradas nas costas das cadeiras do estabelecimento, percorreu com desenvoltura o labirinto formado entre as mesas lotadas de clientes famintos. Gente como ele. Executivos, consultores, empresários… E, sem parcimônia, jogou-se à frente das duas estupefatas moças que já se preparavam para a posse do almejado pedaço de madeira.

Quase delas.

Duas jovens secretárias — uma, inclusive, visivelmente grávida — que, de forma passiva e respeitosa, esperaram o longo e tortuoso final da degustação empreendida pelo casal antes ali sentado, descompassivo ao extremo. Elas já vinham cercando a área ao redor do disputado altar que exaltavam em silêncio com os olhos há bastante tempo, preparando a tomada de posse e, então…

Aquilo.

Uma verdadeira invasão bárbara. O intruso rapaz traçara uma rota inimaginável por entre as apertadas mesas do restaurante lotado, atingindo, com maestria — e antes delas duas —, o solo sagrado sobre o qual fincou sua bandeja, contendo o prato de salada, talheres e a garrafinha de mate natural; da casa.

Nada nem ninguém ali conseguiria ser mais cruel, insensível e maquiavélico do que ele.

As coitadas das moças, indefesas, de bandejas nas mãos e incredulidade nos rostos, não puderam contar nem sequer com os olhares recriminadores das pessoas em volta. Pois, mesmo cercadas por tanta gente, as duas jovens secretárias — e também o bebê dentro da barriga de uma delas — tornaram-se vítimas passivas de um crime sem testemunhas; ou registro. Praticamente, ninguém viu ou percebeu o desenrolar daquela cena; daquela manobra asquerosa, covarde…

Uma perfeita jogada de mestre.

Mesmo que trapaceiro, cruel, insensível… Mas, sim; um mestre. Confortável e hábil na prática do mal. Perverso, nocivo, vil. O rapaz parecia mesmo nem se incomodar com o ato que cometera; com a falta nem de cavalheirismo, mas de humanidade; de respeito. Como se “se dar bem” fosse o lema de sua vida e um glorioso destino pertencesse, indubitavelmente, aos mais “espertos”, como de certo ele se julgava. Demostrava, de fato, estar orgulhoso de si e de suas atitudes.

Desdém.

Mas, mesmo do alto de sua prepotente onipotência, ele não percebera o soturno semblante que o observava de longe. Uma senhora de feições oblíquas que notou o incontrolável risinho surgido no canto da boca dele, após conseguir tomar o lugar daquelas duas pobres moças. Uma irrefreável satisfação que delatava, para a estranha mulher a observa-lo de longe, a falsa inocência de um ato perverso, previamente planejado e agora escondido sob a maquiagem de um rosto quase angelical.

Anjo mau.

Na verdade, quase ninguém notara a presença da velha mulher sentada do outro lado do salão, na ponta oposta ao local da cena recém-ocorrida. A única ali capaz de ultrapassar as camadas daquela camuflagem, rompendo — com seus atentos olhos — os lacres da dissimulação humana; como uma horda de ratos atraída por uma putrefata pele, em um eficiente trabalho de descamação.

Era mesmo uma senhora muito instigante…

Aparentando sabe-se lá qual idade, levantou-se sem chamar atenção. Pegou sua bandeja com o prato já vazio e, arrastando sua longa saia, caminhou, da mesma maneira que se erguera, até as duas moças — ainda paradas, de pé, no centro do salão, à procura de algum lugar onde pudessem, finalmente, agora apenas deglutir o conteúdo já frio de seus pratos.

Apontou-lhes, com um dedo comprido e em riste, a mesa ainda vazia de onde saíra e, na sequência, terminou seu trajeto bem ao lado do jovem executivo, entretido com sua comida saudável e sem se importar mais com o entorno ou com o restante do mundo e das pessoas que o formavam.

A velha ficou em pé ali, parada por um tempo, parecendo esperar por alguma coisa. Então, no exato momento em que as duas secretárias, enfim, arrumavam-se na outra mesa, no extremo oposto do salão, ela se sentou de forma tranquila diante dele.

E os olhos de ambos se encontraram.

Em meio à surpresa daquela inesperada presença, encarando o tenebroso semblante surgido a sua frente, o rapaz parou de mastigar. Os pelos dos braços se arrepiaram e um zumbido começou a ecoar em sua mente, até perceber que o barulho das conversas em volta dele, antes formando um verdadeiro caos sonoro devido a lotação do estabelecimento, foi aos poucos se tornando distante. Mesmo assim, não conseguiu entender sequer uma das várias palavras que a velha então, na mesma ordenação, proferiu repetidamente.

Repetidamente…

Aquelas frases estranhas lhe invadiram as entranhas, ferindo-lhe os ouvidos com o que parecia oriundo de outra época, outra Língua; talvez o Latim, ou algum dialeto já há muito esquecido. O fato é que o tom ameno com que lhe foram ditas aquelas palavras contrastava, e muito, com o profundo brilho recebido do par de olhos ferinos que tinha diante de si, fixados nos seus como se fossem lanças afiadas.

Perdeu a fome. A noção do tempo e espaço. As batidas do coração; audição, tato. Até a cor… Ficou tão pálido e suando tão frio que, ao voltar para o escritório, foi dispensado pelo chefe. Teve febre à noite, sonhou com a figura macabra do restaurante e com o som carregado daquelas palavras, repletas de significados desconhecidos.

Passou algumas semanas sem aparecer no local de que tanto gostava.

Quando deu as caras finalmente por lá, estava bem diferente… Mais magro, bastante abatido, com olheiras gigantescas e um olhar assustado; desesperador mesmo. Tenso, ao extremo. Mas, ao avistar o conhecido salão sempre lotado naquele horário, como pôde confirmar, pareceu se formar novamente um micro sorriso no canto de sua boca.

Da mesma forma que outrora, correu no exato instante em que percebeu uma mesa a vagar, mais adiante. Partiu em disparada, daquela maneira que só ele conseguia tão bem; driblando cadeiras, bolsas e mochilas pelo caminho, até alcança-la. Sentou-se, então, embora com muita pressa.

Demonstrava uma afobação incomum.

Comia tão rápido, que as pessoas em volta chegavam a comentar. Entre uma garfada e outra, olhava em todas as direções, como se um perigo iminente pudesse surgir de qualquer parte, num ângulo de 360 graus naquele salão.

Parecia procurar por algo.

Talvez por causa de seu agir nervoso, o grupo bem ao lado terminou com pressa a rodada de doces e não tardou em se levantar. Assim que as pessoas ergueram as bandejas, o alterado rapaz, ainda mastigando alguma coisa, praticamente saltou de onde estava para cima da nova mesa vaga e, devido ao seu movimento abrupto e ilógico, causou um grande susto nos que dali mal haviam saído, além de outras pessoas mais próximas.

E esta estranha manobra se repetiu ainda por diversas vezes, sempre que outra posição vagava; aumentando assim de forma gradativa o mal-estar entre as pessoas. Rapidamente, a confusão se espalhou por todo o salão. Muitos dos clientes abandonaram seus pratos ainda não terminados e outros deixaram o restaurante às pressas; alguns até mesmo sem pagar pelos produtos consumidos.

Assustados com aquilo.

Um perturbado homem, de aparência doentia, que não conseguia mais ficar sentado apenas em um local. A única exceção era se todas as demais mesas estivessem lotadas. Pois, se alguma vagasse, mesmo que do outro lado do salão, ele imediatamente levantava e saía correndo, desesperado, com a bandeja na mão, até alcançar esta nova posição liberada e nela se rearranjar. Podia estar no meio de uma garfada, ou ter acabado de se sentar; o que fosse…

Ele era impelido sempre a pular para a próxima mesa que vagasse.

Com os sustos causados nas pessoas devido ao seu estranho agir e a consequente debandada dos clientes, mais e mais mesas vazias foram surgindo em seu restaurante predileto e, dessa forma, tornou-se impossível a sua permanência em qualquer uma delas, a ponto de ele não ter conseguido, nem de longe, terminar sua tão sonhada refeição.

Mais um almoço perdido…

Assim como as mesas, ele também acabou por vagar, solitário, em meio a um salão tão vazio quanto a sua vida. Isto lhe colocara em um estado de nervos tão desconcertante que, em suas feições, era possível perceber uma angústia profunda, sufocante.

Exatamente o oposto do que fora visto na última vez, algumas semanas atrás, quando aquele mesmo homem, naquele mesmo salão, parecia estar bem saudável e feliz; realizado com sua ‘grande façanha’. Como se estivesse mesmo contente pela pernada que conseguira dar nas duas coitadas moças, roubando-lhes a mesa e nela de pronto se acomodando, em meio a um restaurante lotado.

Satisfação canalha.

Diferente de agora, pois a amarga expressão no rosto do mesmo rapaz, quase irreconhecível, denotava fadiga extrema. E derrota. Era como se ele fosse obrigado a fazer aquilo. Como se agisse daquela forma insana e atemorizante, involuntariamente. Um cacoete desesperador. Uma sina…

Ou praga.

O fato é que sua até então confortável vida virara do avesso no exato instante em que cruzara com aquela perturbadora figura. Uma velha e soturna senhora. Esta sim, aterrorizante. E nunca mais ele a vira de novo. Somente em sonhos. Pesadelos. Tentava ao máximo não adormecer, mas em determinado ponto era vencido pelo cansaço. Por um latente e cada vez mais incômodo esgotamento.

E então a reencontrava. A pele enrugada e oleosa, esverdeando-lhe todo o semblante. O olhar negro, profundo. Como duas bolas ocas a refletirem o mais perene recanto de escuridão contido em sua avelhantada carcaça. Sem alma, sem vida…

Sem volta.

Era realmente angustiante. Ele passara a tomar diversos remédios; a maioria com tarjas pretas estampadas nas caixas. Para dormir, para acordar, para tentar amenizar as frequentes dores de cabeça e pelo corpo… Até para conseguir ir ao banheiro ele precisava de remédios, agora.

Sentia-se diferente.

Emocionava-se com extrema profundidade, e facilidade. Chorava no banho, com o carinho da água sobre sua pele irritada; ao se deitar, sentindo a maciez do colchão; ao acordar e vislumbrar a beleza dos raios de sol invadindo sua janela…

Por mais um dia a nascer.

Debulhava-se em lágrimas ao assistir qualquer propaganda de margarina na televisão; ao ver um cãozinho perdido na rua; ao presenciar um casal de idosos fazendo compras juntos na farmácia; ao receber mensagens com imagens animadas de ‘bom dia’ nos grupos de WhatsApp…

E nunca mais chegou em casa com o troco das compras feitas na padaria da esquina, que colocava todo santo dia no copinho vazio do mendigo de sua rua, juntamente de um saco repleto de pães, também por ali deixado com as mãos trêmulas e muitas lágrimas a escorrerem de seu rosto combalido.

Ele havia mudado…

Outro dia, no metrô, na volta para casa, teve os distantes pensamentos interrompidos pela movimentação ocorrida dentro do coletivo lotado que, ao parar em uma das estações, acolheu mais alguns viajantes.

Dentre eles, uma moça — visivelmente grávida — de aparência cansada.

Para quem, em meio a uma incontrolável dor a comandar internamente seus músculos das pernas, ele foi, de imediato, impelido a ceder seu lugar…

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* Ricardo Gnecco Falco é jornalista, músico, escritor e produtor editorial.

Autor dos livros “Literatividades – Contos Escolhidos” (Antologia, 2013) e “Subterfúgio” (Romance, 2012); Organizador das antologias “Desencontos” (2011) e “Rede de Contos” (2010); além de Fundador e Editor-chefe da Seu.Livro.Pronto, produtora especializada em Publicação Independente.

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