Contos

A Pizza

por Ricardo Gnecco Falco

Bia faz tudo tão rápido que Bruno sequer percebe a manobra.

— Conseguiu? — dirige o olhar e a pergunta para a esposa, a deslizar o polegar com desenvoltura sobre a tela do celular que ela havia lhe pedido emprestado.

— Não. O seu não conectando, também… — cola a palma da mão livre na mão estendida pelo marido, sobre a mesa do restaurante.

Estão em um shopping, próximo ao apartamento onde moram. A praça de alimentação se encontra lotada e, mesmo com a fartura de opções gastronômicas, parece não conseguir dar vazão ao apetite da enorme quantidade de clientes.

É fim de tarde, a hora mais procurada. Se Bruno não houvesse chegado mais cedo, estariam ambos agora em alguma das diversas filas formadas por ali. E com muita, muita fome.

Ele era professor de História, docente em uma grande universidade federal. Iniciara a carreira pedagógica aos vinte e sete; mesma época em que conhecera Bianca, com quem se casaria dois anos depois, no dia tido por ele como o mais feliz de toda sua vida.

Já Bia era seis anos mais nova do que o esposo e, nas vésperas de completar só agora as vinte e nove primaveras, poder-se-ia dizer que vivia o auge. O apogeu de sua plenitude e beleza.

Era assim que Bruno a via. E todo este esplendor se estampava no semblante admirado do esposo, a se questionar internamente sobre como havia ele conseguido tudo, e tanto, em tão pouco tempo de vida.

Não que se achasse feio… Muito menos desmerecedor, pois sempre buscara se cuidar e praticara o bem. Mas, ter como sua mulher e futura mãe de seus filhos aquele pedaço perfeito da criação divina que vislumbrava bem a sua frente, realmente, ultrapassava todas as mais abrangentes expectativas que ousara ter na juventude. Hoje, aos trinta e cinco anos, considerava-se um cara de sorte. Muita sorte.

Ter conhecido Bia, naquela pequena viagem de final de semana, era para Bruno como ter encontrado um bilhete de loteria premiado.

A banda de um amigo iria se apresentar numa casa de shows de Juiz de Fora e ele, estendendo até o alto da serra as comemorações pela conquista do almejado emprego naquela instituição de ensino renomada, aproveitaria a oportunidade para conhecer a cidade.

Assim, dessa forma quase que por acaso, Bruno acabou encontrando o grande amor de sua vida. Aquela que seria sua esposa, sua companheira eterna, sua cúmplice… Sua musa.

“Você é muito gatinha… Gostei de ter lhe conhecido. Já estou com saudades dessa boquinha gostosa! Rô.”

Bia chamava atenção, mesmo. Tinha um corpo muito bonito. Pernas longas e bem torneadas, seios e sorriso fartos; simpatia na medida exata de uma sensualidade tão latente quanto incerta.

Sabia, desde pequena, que despertava o desejo dos homens. A genética da família era emancipada e, aos dezesseis, já lhe permitia adentrar em estabelecimentos destinados a maiores de idade, sem a menor necessidade de apresentação de comprovantes. A prova era ela.

E todos queriam prová-la…

Aos dezessete começou a trabalhar; um estágio numa loja de vestuário para ginástica. Deu tão certo que, em seis meses, já ganhava mais do que as funcionárias mais velhas, efetivadas. Chegava a ser covardia com o ávido público, e mesmo com suas colegas de trabalho, colocá-la para atender os clientes dentro daquelas roupas apertadas que, a cada nova remessa, se esgotavam na metade do tempo.

Mas nem só de glórias sua precoce vida profissional fora marcada. O envolvimento com o dono da rede de lojas lhe rendeu muito mais do que uma merecida promoção recebida, ao completar a maioridade…

Casado e pai de duas crianças, o chefe não teve outra opção a não ser a de acatar a condição imposta carinhosamente pela esposa, ao tomar conhecimento do real conteúdo das ‘reuniões de negócios’, cada vez mais frequentes, do marido.

Foram tempos difíceis para a moça, pois cidades pequenas não costumam deixar assuntos como este sem a indevida atenção. Atenção e repercussão.

Bia conheceu muitas pessoas nesta época conturbada de sua vida, pois os efeitos colaterais do boca a boca ocorrido não propiciaram boas oportunidades para o desenvolvimento de grandes virtudes. Bia ainda não sabia, mas a imensa maioria dos homens que dela se aproximavam, nesta intensa fase, já tinha ouvido falar sobre ela. E era exatamente nesta posição que eles desejavam terminar.

E, geralmente, terminavam.

Claro que nem toda menina sonha em encontrar um ‘Príncipe Encantado’. Mas, Bia encontrou muitos… Aos vinte e um deles, completou vinte e um anos de idade. E tomou a decisão de parar de acreditar em contos de fada. Não era mais uma menina. Era adulta; vivida. Desejava algo mais. Algo a mais… Mais do que tudo aquilo que já havia experimentado.

De fato, gostava de ser cobiçada pelos homens. E do fato de ter aprendido a satisfazê-los. Era bom. Bom ter este poder; poder ter este saber. Saber corresponder a este querer. Ser almejada…

Mas Bia queria mesmo era ser amada.

Então surgiu Bruno; educado, inteligente, culto. Era da cidade grande; professor. Simpático, alegre, diferente… Respeitador. Tinha um sorriso bonito, sincero. Um brilho no olhar. Boca carnuda… Não tentou beijá-la. Devia ser casado. Não; não era. Mas não tentou beijá-la. Flagrou-o olhando para o seu decote; uma, duas vezes. Mas não tentou beijá-la. Nem quando ela ficou olhando para ele; para a boca dele. Focando… Não tentou beijá-la. Nem quando ela se aproximou do rosto dele; focando…

Nem tentou beijá-la!

Trocaram mensagens por celular a semana toda. Ela havia pedido o número dele no final daquela dançante noite. Ele mandou mensagem no dia seguinte. Ela respondeu. Ele respondeu. Correspondeu. No final de semana posterior ela desceu a serra. Ele a encontrou na rodoviária. Apresentou-lhe a Cidade Maravilhosa. Baía de Guanabara, Pão de Açúcar, Copacabana, Ipanema… Urca. Contou-lhe a história do Forte, do museu, do bairro, da cidade… Encantou-lhe. Mas, não tentou beijá-la. Logo ela, que não era mais uma menina. Era adulta; vivida, desejada…

Desejante.

O beijo só aconteceu na rodoviária, instantes antes de embarcar de volta. Boca carnuda… O gosto que ficou com ela a viagem inteira. A semana inteira. Por inteiro. Era tão bom… E tão pouco. Bia desejava mais. A semana passou, lenta e arrastada como uma ampulheta gigante. Bia sangrou rios de areia, até o esgotar da ausência que, correndo em sua direção, extinguira-se. Bruno havia subido a serra, novamente. Saíram de carro e o domingo de folga passou como uma brisa. O passeio na praça, o cinema, o jantar…

O vinho.

Já era madrugada quando o carro parou, uma quadra antes da residência de Bia, a pedido dela. Era a despedida. Tão perto agora e tão longe depois. A distância crescendo na exata proporção da ideia do vindouro girar de números no painel do carro de Bruno, após deixá-la. Bia não queria sentir novamente aquele vazio. Queria vazão. Dar vazão a tanto desejo acumulado na contagem dos dias passados e já de novo soturnamente vislumbrados.

Tão perto agora e tão longe depois…

Bruno sentiu as mãos audaciosas da jovem em sua cintura e os beijos não mais se limitarem à carne mole de seus lábios. Nem a considerável inércia do rapaz pareceu intimidar a decidida moça que, a partir daquele momento, dele desfrutou como um Oásis no deserto.

Repreensível ou não, o fato é que o ato aconteceu ali. E Bruno, mesmo não esperando por tudo aquilo, também sua sede abrandou. Tanto, que logo após o bater da porta aberta por Bia, voltando-se novamente para ele, não mais demonstrava assombro; mas sorria.

O beijo de despedida recebido em seguida foi estranho. Como um pacto. A língua a selar com cera quente a paixão da carta sem palavras redigida ali. Um Atestado de Bia. Bruno não falou nada; apenas concluiu. E Bia, naquele veículo, contara-lhe…

Tudo.

Mesmo historicamente possuindo importantes significados, toda a desenvoltura demonstrada por Bia foi imediatamente transformada em ‘segredos de guerra’. E Bruno, melhor do que ninguém, sabia que o registro oficial dos fatos sempre é feito pelo lado vencedor.

Exatamente como o professor se sentia naquele momento.

Novos desafios profissionais, intensas experiências passionais… Tudo novo. Renovado. Um ímpeto compartilhado que de pronto anuviou não penas a racionalidade de Bruno. Poder ter alguém com tamanha impavidez ao seu lado, com quem dividir suas vitórias, anseios, descobertas, expectativas e sonhos, parecia-lhe ser a realização plena de todos seus planos. Planos de completude. E, em menos de um mês, seu coração também já era inteiramente dela.

Pena que morassem tão longe.

Por isso, já com emprego e namorada dos sonhos, não demorou muito até que, aproveitando a ótima fase profissional, ele convidasse Bia para jantar em um elegante estabelecimento onde, ao final da noite, lhe entregaria a caixinha de veludo e, de joelhos como nos filmes, lhe faria ouvir a pergunta responsável pelo próximo passo que dariam.

Juntos.

Foram apenas seis meses até Bia conseguir um emprego no Rio, onde iniciaram a vida a dois. Já noivos, fizeram o chamado “test drive” por quase dois anos até, finalmente, trocarem de mão os anéis, símbolos do compromisso previamente assumido e, então, reconfirmado.

“Você é muito gatinha…”

Bianca acrescentou ao próprio nome o sobrenome de seu, agora oficial, esposo. Nem precisava, mas fizera questão de alterá-lo, conforme a lei lhe permitia. Havia também, com aquele ato, apagado de sua vida um pregresso hiato; enterrando ali um incômodo histórico de sua latente personalidade.

“…Gostei de ter lhe conhecido.”

Transformara-se em uma nova mulher. Mulher casada, respeitada, bem falada, querida… Amada. Ganhara um novo nome, uma nova biografia. Uma nova vida. A liberdade do ‘anonimato’ de um novo ciclo; uma nova Bia, numa nova cidade. Novos amigos, novas oportunidades. Um promissor futuro. Sem famas, sem manchas, sem sombras.

Sem fantasmas.

“…Já estou com saudades dessa boquinha gostosa!”

Bruno realmente a amava. Fazia tudo por ela. Com ela. Para ela. Os primeiros anos, sempre funcionando como o termômetro das relações, foram a deliciosa época das descobertas. De ambos os lados.

De tão diferentes, chegaram mesmo à complementaridade.

Bruno era o pensamento, a reflexão, o planejamento… O pé no chão. Mais polido, pensava muito antes de fazer e falar, analisando com atenção os cenários, reações e movimentações em volta.

Bia era o oposto disso tudo. Espontânea e ativa demais, estava sempre “ligada no duzentos e vinte”, como Bruno costumava dizer. Fiel representante da ação inconsequente, do puro agir… Do ato.

“…Rô.”

— É… sem rede, mesmo. — Bia devolve o aparelho para o esposo.

A pizza chega no mesmo instante.

— Ah… Depois me lembra de te contar sobre uma mensagem maluca que eu recebi no celular… — Bruno pede enquanto termina de reforçar o corte do primeiro pedaço, que logo em seguida coloca no prato da mulher.

Bia, forçadamente, demora um tempo até perguntar:

— Que mensagem? — fala, aplicando um tom casual na frase.

Bruno agora se serve.

— Uma que um carinha me mandou por engano. Eu até guardei ela pra te mostrar… — diz, rindo, enquanto parte com o garfo um filete de queijo derretido que havia se esticado entre a borda da bandeja e o seu prato.

Bia dá um longo gole no suco de laranja, recém-trazido pelo garçom. Seus olhos passeiam de um lado para outro, várias vezes, enquanto seca os lábios com o guardanapo. Então, de forma mecânica e sem falar mais nada, volta a comer.

O casal repete e, ao final do segundo pedaço, ainda em silêncio, Bia observa atentamente quando o esposo pega o celular sobre a mesa e começa a mexer no aparelho.

— Ué… — Bruno parece confuso.

— O que foi? — ela tenta, com muita dificuldade, não transparecer tensão.

— Não achando… — o esposo coça a barba enquanto, com a outra mão, continua a tocar na tela de seu smartphone, repetida e improficuamente. — Não entendo…

— Você deve ter apagado depois que leu, Bruno… — Bia sugere, com o mesmo tom casual de antes.

— Não, amor… — o rapaz insiste na procura. — Eu estava relendo a mensagem agora há pouco aqui, enquanto esperava você chegar…

A informação deixa Bianca completamente absorta. O esposo, recalcitrante, prossegue na busca, com o polegar já doendo:

— Que doideira! Como é que pode uma mensagem sumir assim? — Bruno indaga a si mesmo.

— Eu não… Sei…

Bia não consegue mais dominar o medo. Se não houvesse se antecipado; se não tivesse agido por impulso; talvez ainda desse para…

Não!

Não dava. O fato é que Bia já havia dado mole na noite anterior, conforme ela mesma suspeitava e confirmara logo ao chegar ali. Tinha mesmo passado o número do esposo para o carinha da boate, num etílico e imperdoável… ato falho! No entanto, foi ao deletar aquela até então improvável prova que Bia, ironicamente, delatara-se.

Bruno desiste de repetir, em vão, as inocentes operações em seu aparelho, colocando-o de volta sobre a mesa.

— Isso é impossível! — ele busca amparo, no rosto de sua amada, pelo inexplicável sumiço da mensagem; só então percebendo a estranha mutação ocorrida naquele outrora angelical par de olhos castanhos.

De dilatadas pupilas…

* * *

O autor

O autor

* Ricardo Gnecco Falco é jornalista, músico, escritor e produtor editorial.

Autor dos livros “Literatividades – Contos Escolhidos” (Antologia, 2013) e “Subterfúgio” (Romance, 2012); Organizador das antologias “Desencontos” (2011) e “Rede de Contos” (2010); além de Fundador e Editor-chefe da Seu.Livro.Pronto, produtora especializada em Publicação Independente.

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