Maicon
Contos

Maicon

por Ricardo Gnecco Falco

Nunca consegui aprender outro idioma. Nem mesmo aquele que praticamente todo mundo falava; até os flanelinhas da rua. Tentei por diversas vezes, mas me enrolava todo. Quero dizer, quase todo, pois a minha língua…

Essa não enrolava de jeito nenhum.

Não importava a quantidade de cerveja que eu tomasse; doses de uísque, shots de tequila, melzinho com cachaça… Eu podia entrar quase em coma alcoólico, ficar com as pernas tremendo mais do que rastafári passando em blitz; mas minha língua, simplesmente, não dobrava.

E, para falar a linguagem dos gringos, principalmente o tal do idioma universal, não tinha outro jeito.

Ailó viul, letisgol, uâna quíssiul… Nada disso saía da minha boca. E olha que eu era nascido e criado numa cidade turística, em um local pra lá de famoso; onde visitantes do mundo todo — e já tinha ouvido falar que até mesmo de outros mundos — vinham interagir e se divertir com a boemia local.

Bares mil, sinucas, casas de show, casas de ‘massagem’, quadras de samba e até um circo ‘voador’ compunham esse universo concorrido. Era uma região extremamente musical e artística, porém também caótica e perigosa — uma das mais arriscadas de uma cidade que já era toda ela violenta —, pois oferecia atrativos para os mais diversos gêneros e tipos de pessoas.

Meu bairro era tipo uma esteruêi tchu réven da realidade.

Só pra se ter uma ideia, havia mesmo uma escadaria lá; de verdade. Toda adornada por ladrilhos coloridos, que levava os turistas mais locões direto para as bocas de fumo que ficavam no alto. E vivia lotada.

Agora… O que eu mais gostava daquelas cercanias, disparado, eram as gringas que apareciam por lá; aos enxames. Principalmente nas sextas, o dia mais florido da semana. É claro que, como um bom brasileiro, lá ia eu, todo perfumado e sensual, cheio de ginga e esperança, tentar a sorte pra cima de alguma beldade daquelas, de olhos azulados e pele leitosa — confesso que eu tinha a maior tara pelas branquelinhas —, mesmo sabendo que não conseguiria desenrolar sequer um relôu.

Mas, eu não desistia!

Na maioria das vezes, me dava mal. Obviamente… E culpava mesmo a minha incapacidade absurda para falar, pelo menos, o tal do inglês. Pois, convenhamos… Se eu não fosse apenas feio e pobre, mas sim um ‘feinho humilde, porém bilíngue’, as minhas chances com aquelas gringas deliciosas de certo que aumentariam; e muito!

No entanto, mal sabia eu que grandes mudanças estavam para chegar…

E vieram de repente, numa madrugada quente como outra qualquer. Surgiram sem aviso, na forma daquelas luzinhas azuladas que brotaram meio que do nada no céu, bem em cima do meu cafofo. Seria realmente tosco, se não fosse verdade. Talvez por isso mesmo tenha achado tudo tão hilário.

O fato de terem escolhido surgir bem ali, literalmente no meu quintal, não tirava a graça da situação; pelo contrário, para mim deixava tudo ainda mais inusitado. Tanto lugar melhor para elas aparecerem, e resolveram dar as caras no mesmo bairro decadente que a gringalhada, também, tinha elegido como preferido na cidade.

Deve ser coisa de alemão, mesmo… Vai entender!

Eu vi primeiro pela tevê, pois tudo quanto era canal ficou mostrando sem parar o que, depois, os ‘especialistas’ afirmaram ser óbines. Óvises… Êita, porra… Ó-vi-nis! Objetos voadores não identificados. Pipocaram ao mesmo tempo pelo mundo todo e ficaram daquele mesmo jeito; parados e brilhando.

Em São Paulo, pelo menos, estacionaram bem no alto da Avenida Paulista, região nobre da cidade, com suas luzes azuladas sendo refletidas pelos arranha-céus enormes e chiques. Em Belo Horizonte, foi em cima do estádio mais famoso de lá. Em Brasília, flutuaram bem sobre a Esplanada dos Ministérios. Na Bahia, foi no célebre Elevador Lacerda e, em Curitiba — lembro-me de ter visto na tevê — as estrelinhas brilharam no topo de um afamado prédio da pê-efe.

Resumindo, os óvides marcaram presença em todos os Estados brasileiros, com exceção do Acre. E, fora do Brasil, as luzes seguiram o mesmo protocolo; ou seja, lugares famosos. Em Nova Iorque surgiram na Estátua da Liberdade; em Londres brilharam sobre o castelo daquela velhota cheia dos ouros; em Paris foi no alto da Torre Eifél…

O mundo todo testemunhou aqueles sinais.

Mas… E aí? Apareceu algum álhen de verdade? Alguém viu algum etê propriamente dito? Algum chupa-cabra, pé-grande… o Xiubáca? Rolou algum terremoto, tsunami? Teve alguma guerra? Alguma explosão? Mísseis nucleares foram disparados? Foi o início do fim do mundo?

Nada… Nem sequer um integrante dos Rôlin Instônis finalmente morreu.

O contrário, então, aconteceu? Acabou a maldade no mundo? A fome, a ganância, os preconceitos? Cessaram os conflitos mundiais? Veganos e carnívoros fizeram piqueniques juntos? O Tinder revelou de graça aos seus usuários quem curtiu o perfil de quem?

Também não…

O que houve foi que as luzes azuladas simplesmente desapareceram nos céus, da mesmíssima forma que surgiram. Só isso. Brilharam por exatas três horas, trinta e sete minutos, onze segundos — sim, algum corno cronometrou essa palhaçada — e, depois, se apagaram. Sumiram. Escafederam-se.

Agora… As discussões boçais, suposições furadas, teorias malucas; os detalhamentos das filmagens, estudos de caso, interpretações; as reprises, indagações, análises, menções, publicações, memes…

Infindáveis!

O planeta ficou parecendo com uma pós-projeção mundial e simultânea de bôrde bóquiz. Bãrdi Bóquise… Enfim… Aquele filme da netiflíquisse, com a Sandra Búloque, que ninguém entendeu bulhufas, mas geral ficou postando sua teoria ‘genial’ nas redes sociais, brigando com os coleguinhas, discutindo com a mãe, a sogra, o marido, o amante, o outro vizinho… E o canal de istrímin só aumentando seus lucros e rindo da cara de todo mundo.

Já eu, confesso que fiquei de boas na época. Mesmo porque, por incrível que pareça, estava todo mundo preocupado em desvendar os ‘mistérios do universo’, as razões da visitação dos etês invisíveis, o repentino surgimento e partida de visitantes interplanetários; enquanto eu, no meio de tudo aquilo, continuava era só pensando em como me dar bem com as gringuinhas gostosas, visitantes oriundas de outros países aqui da Terra mesmo.

Pelo menos, era isso que eu imaginava…

Ironicamente, como só o universo sabe ser, por não ter dado a mínima para os tais dos óbines, eu acabei foi caindo na armadilha deles. A minha empáfia destoante, motivada pela doentia fixação de molhar meu biscoitão numa xícara estrangeira, já havia chamado a atenção dos brilhosos antes mesmo das tais luzes aparecerem — não por acaso — bem em cima da minha casinha.

E, de certo, eles também já tinham planejado como agir nos outros locais, escolhendo previamente seus alvos. Eu penso que as primeiras vítimas tenham sido aquelas mais suscetíveis, por qualquer razão, a notar as alterações que o mundo passaria a apresentar, de forma quase imperceptível, após a chegada deles.

Pois, foi justamente a partir da observância de certos — na verdade errados — acontecimentos em meu entorno que, juntando-os, eu cheguei à indubitável conclusão de que muitas coisas estavam, de fato, se sucedendo de forma diferente do que antes era considerado como o ‘normal’.

O estopim foi um episódio inusitado ocorrido dentro do metrô, quando eu voltava de mais um dia estressante de trabalho, rumo ao meu muquifo. De repente, um odor pútrido surgiu no interior do vagão, como se viesse diretamente das profundezas do último círculo do Inferno — e o metrô não é tão fundo assim —, se espalhando por toda área do coletivo.

Em poucos instantes, o ar estagnado da composição ficou completamente tomado pelo cheiro calamitoso e covarde que passou a estuprar as narinas indefesas de todos os presentes, confinados naquele ambiente tenso e desconfortável, chegando a causar náuseas nas pessoas de olfato mais sensível.

Alguém havia soltado um tremendo peido ali dentro…

Certamente que o intestino responsável por liberar aquela aberração odorífica não poderia ser considerado normal, muito menos saudável, vista a podridão emanada através do esfíncter de uma criatura que, caso ainda estivesse viva, não deveria — e muito menos mereceria — continuar daquela forma por muito mais tempo.

O fato é que a flatulência dentro de um vagão de trem ou metrô, hermeticamente fechado e lotado, é um crime de difícil elucidação. E, infelizmente, muito mais comum do que qualquer sociedade moderna e justa desejaria que o fosse. Trata-se de um delito hediondo, rechaçado por toda a humanidade, porém totalmente sem castigo para seu anônimo autor. Todos pagam o preço e sofrem as consequências deste ato desolador e impuro; principalmente as próprias vítimas inocentes e, até então, indefesas.

Digo ‘até então’ porque, no momento seguinte ao mal-estar geral, causado pelo cheiro insuportável daquele peido atômico, um raio luminoso de tom azulado surgiu na composição e, em questão de milésimos de segundo, simplesmente desintegrou uma gringuinha linda, de vestido decotado e expressão blazê; para quem eu justamente estava olhando já fazia algum tempo, numa tentativa de fuga erótico-imaginária daquela malcheirosa situação.

Misturado ao raio azulado, que parecia ser um tipo de lêizer, havia também uma essência que logo se juntou à fumaça remanescente do processo, espalhando-se pelo vagão do coletivo e deixando um agradável odor de lavanda, permitindo assim a normalização dos movimentos respiratórios por parte dos passageiros.

O mais inusitado de tudo, no entanto, não foi nem o raio surgido sabe-se lá de onde, nem a desintegração espantosa da linda loira peidante, nem o inexplicável cheirinho gostoso de flores, que substituiu por completo o odor terrível antecessor… O estranho, mesmo, foi o fato de que absolutamente nenhum dos presentes se importou com nada daquilo.

Não, não estou me referindo à flatulência estrangeira, invasora e fétida, pois isso todos sentiram no âmago de suas almas e pulmões; mas sim ao fato de ninguém estranhar que aquele misterioso raio tenha dizimado por inteiro um semelhante, apagando imediatamente da existência uma deusa de olhos azuis e, ok… intestinos negros; mas ainda assim uma vida.

Ninguém sequer se assustou ou lamentou o desfecho fatídico ocorrido. O assassinato de uma moça cujo gosto reprovável por diânqui fúdi acabou significando sua sentença de morte. E uma sentença abaixo-assinada por todos os presentes àquela execução sumária.

Pelo contrário; era possível perceber nas expressões dos demais passageiros uma sensação de regozijo, de justiça feita, de satisfação… Pois aquele cheirinho de flores perfumadas ainda trazia uma paz, plantava um sentimento de aconchego e naturalidade na mente de cada um ali dentro.

Entretanto, foi nesse momento que me dei conta de que eu também fazia parte daquele grupo de algozes. Eu também havia desejado, mesmo que inconscientemente, que o autor pagasse, e pagasse caro, por seu ‘crime’.

“… uma criatura que, caso ainda estivesse viva, não deveria — e muito menos mereceria — continuar daquela forma por muito mais tempo.”

É claro que eu presumi um velho ranzinza, grosso, escroto, mau-caráter, pedófilo e botafoguense, como sendo o promotor daquele odor podre; jamais suporia que a galeguinha com a qual eu fantasiava estar transando ardentemente no chão de uma fábrica de incensos indianos — “sonho meu…” — seria capaz… daquilo.

Então, ao deixar a estação ainda muito abalado, decidi afogar num bar próximo de casa a culpa que pesava em minha consciência; já planejando a menor distância para depois arrastar meu corpo, igualmente devastado, de lá até a minha cama.

Não sei explicar bem a ordem dos acontecimentos seguintes, mas em algum momento durante a expiação de meus pecados, um grupo jovem e animado de gringas adentrou o bar e acabou ocupando a mesa bem ao lado da minha. Aparentemente, em consequência da lotação do estabelecimento.

Nem preciso dizer que isso fez meus planos — e o restante da noite — mudarem da água para o vinho. Ou, melhor dizendo, das cervejas para as caipirinhas. Muitas caipirinhas. Dessa vez, as turistas gostosas não iriam pensar que minha aproximação estratégica poderia se tratar de um assalto, sequestro ou coisa do tipo…

Era ainda meio do mês e a carteira estava mais fina do que as minhas canelas, mas o fato é que o neguinho aqui, mesmo duro e desnutrido, bancou foi o Onássis pra cima daquelas branquinhas apetitosas, criadas à base de corne flêiques.

Mai nêime is Maicon endiu arol biltiful; saiu de repente, após o garçom dar início aos trabalhos. E elas riram. Um riso diferente. Não era de medo. Nem de deboche. As loirinhas me entenderam perfeitamente. Iti uós trú; dei uãr laiquin mi… Até minha mente passou a ‘falar’ no idioma delas.

Uáti zor nêimes; arrisquei de novo e elas responderam, com aqueles olhinhos claros como o céu mais limpo de verão. Quétlin, Rãna, Êmili e Rêitiel eram os nomes das princesas; e elas eram mesmo maravilhosas. Estavam interessadas; estavam tólquin uifemi. Parecia um sonho tudo aquilo… Emai drimin? E elas riram ainda mais alto; ainda mais gostoso.

Sim, era verdade. Eu estava não apenas falando, mas também flertando iníngliche com aquelas gringatas. Não me recordava de já ter interagido daquela maneira antes, e com tanto sucesso, em toda minha vida; nem mesmo em Português. Contei que morava ali perto, perguntei se elas gostariam de ir até o meu cafofo para continuarmos aquela prosa promissora em um local mais, ahm… Privativo, exclusivo.

Enfim…

Desenrolava com tamanha facilidade, tanta fluidez e malandragem, que chegou num ponto que nem era mais preciso falar. Os olhares já faziam isso. E as respostas eram sempre positivas, sempre incisivas. Ié, Maicon… Gudai dia; létis gôunal!

Lembro que no trajeto rumo a minha casa, porém — mais precisamente após deixarmos as ruas principais e dobrarmos numa viela escura de paralelepípedos, que nos levaria até o destino final daquela noite improvável —, uma delas parou, ficando para trás. Provavelmente, por ter readquirido a razão.

Mas, tudo bem… Mesmo com uma perda em meu jardim, restavam ainda três lindas rosas para eu despetalar! Nada mal para um jardineiro de meia tigela como eu, acostumado a somente adubar a terra. Eu não tinha nada a reclamar…

A não ser do fato que, segurando-me cada vez mais forte, o trio remanescente passou a me arrastar pelo caminho, demonstrando obstinada pressa. Tentei fazê-las diminuir o ritmo. Em vão… Os passos ainda se aceleraram e, por mais força que eu fizesse, não conseguia vencer a pressão surreal imposta pelos braços delas.

Subitamente, um intenso facho de luz azulada surgiu pouco atrás de nós, no alto, projetando, no entanto, apenas a minha sombra nas pedras do chão. Creio ser desnecessário citar, mas a língua acabou não sendo o único órgão meu a amolecer naquele fim de noite inesperado…

Minha derradeira noite no planeta.

Sugado pela luz, flutuei como se estivesse dentro de uma bolha de sabão azulada. E continuei subindo, avistando telhados, árvores, quintais, carros, ruas, arrastões… Depois bairros, cidades, países inteiros. Tudo ficando menor e mais longínquo. Até que, antes da penumbra sideral surgir no enorme horizonte, pude enxergar toda crosta terrestre.

E, sim… A Terra era mesmo plana.

Já na imensidão fria do Espaço, outra constatação impensável invadiu minhas retinas. Vi os rostos lindos de Rãna, Quétlin, Rêitiel e Êmili olhando atentamente para mim… Suas faces foram se juntando, até formarem um único e conhecido semblante.

Era a loira do metrô, cujo par de olhos brilhou num tom azul celestial — intenso e vívido como um raio — ao pronunciar meu nome de maneira enfática, separando-o significativamente em sílabas:

My con

Fazendo assim com que, dessa vez, fosse o meu esfíncter a sucumbir.

* * *

O autor

* Ricardo Gnecco Falco é jornalista, músico, escritor e produtor editorial.

Autor dos livros “Literatividades – Contos Escolhidos” (Antologia, 2013) e “Subterfúgio” (Romance, 2012); Organizador das antologias “Desencontos” (2011) e “Rede de Contos” (2010); além de Fundador e Editor-chefe da Seu.Livro.Pronto, produtora especializada em Publicação Independente.

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