Maicon
Contos

Maicon

por Ricardo Gnecco Falco

Nunca consegui aprender outro idioma. Nem mesmo aquele que praticamente todo mundo falava; até os flanelinhas da rua. Tentei por diversas vezes, mas me enrolava todo. Quero dizer, quase todo, pois a minha língua…

Essa não enrolava de jeito nenhum.

Não importava a quantidade de cerveja que eu tomasse; doses de uísque, shots de tequila, melzinho com cachaça… Eu podia entrar quase em coma alcoólico, ficar com as pernas tremendo mais do que rastafári passando em blitz; mas minha língua, simplesmente, não dobrava.

E, para falar a linguagem dos gringos, principalmente o tal do idioma universal, não tinha outro jeito.

Ailó viul, letisgol, uâna quíssiul… Nada disso saía da minha boca. E olha que eu era nascido e criado numa cidade turística, em um local pra lá de famoso; onde visitantes do mundo todo — e já tinha ouvido falar que até mesmo de outros mundos — vinham interagir e se divertir com a boemia local.

Bares mil, sinucas, casas de show, casas de ‘massagem’, quadras de samba e até um circo ‘voador’ compunham esse universo concorrido. Era uma região extremamente musical e artística, porém também caótica e perigosa — uma das mais arriscadas de uma cidade que já era toda ela violenta —, pois oferecia atrativos para os mais diversos gêneros e tipos de pessoas.

Meu bairro era tipo uma esteruêi tchu réven da realidade.

Só pra se ter uma ideia, havia mesmo uma escadaria lá; de verdade. Toda adornada por ladrilhos coloridos, que levava os turistas mais locões direto para as bocas de fumo que ficavam no alto. E vivia lotada.

Agora… O que eu mais gostava daquelas cercanias, disparado, eram as gringas que apareciam por lá; aos enxames. Principalmente nas sextas, o dia mais florido da semana. É claro que, como um bom brasileiro, lá ia eu, todo perfumado e sensual, cheio de ginga e esperança, tentar a sorte pra cima de alguma beldade daquelas, de olhos azulados e pele leitosa — confesso que eu tinha a maior tara pelas branquelinhas —, mesmo sabendo que não conseguiria desenrolar sequer um relôu.

Mas, eu não desistia!

Na maioria das vezes, me dava mal. Obviamente… E culpava mesmo a minha incapacidade absurda para falar, pelo menos, o tal do inglês. Pois, convenhamos… Se eu não fosse apenas feio e pobre, mas sim um ‘feinho humilde, porém bilíngue’, as minhas chances com aquelas gringas deliciosas de certo que aumentariam; e muito!

No entanto, mal sabia eu que grandes mudanças estavam para chegar…

E vieram de repente, numa madrugada quente como outra qualquer. Surgiram sem aviso, na forma daquelas luzinhas azuladas que brotaram meio que do nada no céu, bem em cima do meu cafofo. Seria realmente tosco, se não fosse verdade. Talvez por isso mesmo tenha achado tudo tão hilário.

O fato de terem escolhido surgir bem ali, literalmente no meu quintal, não tirava a graça da situação; pelo contrário, para mim deixava tudo ainda mais inusitado. Tanto lugar melhor para elas aparecerem, e resolveram dar as caras no mesmo bairro decadente que a gringalhada, também, tinha elegido como preferido na cidade.

Deve ser coisa de alemão, mesmo… Vai entender!

Eu vi primeiro pela tevê, pois tudo quanto era canal ficou mostrando sem parar o que, depois, os ‘especialistas’ afirmaram ser óbines. Óvises… Êita, porra… Ó-vi-nis! Objetos voadores não identificados. Pipocaram ao mesmo tempo pelo mundo todo e ficaram daquele mesmo jeito; parados e brilhando.

Em São Paulo, pelo menos, estacionaram bem no alto da Avenida Paulista, região nobre da cidade, com suas luzes azuladas sendo refletidas pelos arranha-céus enormes e chiques. Em Belo Horizonte, foi em cima do estádio mais famoso de lá. Em Brasília, flutuaram bem sobre a Esplanada dos Ministérios. Na Bahia, foi no célebre Elevador Lacerda e, em Curitiba — lembro-me de ter visto na tevê — as estrelinhas brilharam no topo de um afamado prédio da pê-efe.

Resumindo, os óvides marcaram presença em todos os Estados brasileiros, com exceção do Acre. E, fora do Brasil, as luzes seguiram o mesmo protocolo; ou seja, lugares famosos. Em Nova Iorque surgiram na Estátua da Liberdade; em Londres brilharam sobre o castelo daquela velhota cheia dos ouros; em Paris foi no alto da Torre Eifél…

O mundo todo testemunhou aqueles sinais.

Mas… E aí? Apareceu algum álhen de verdade? Alguém viu algum etê propriamente dito? Algum chupa-cabra, pé-grande… o Xiubáca? Rolou algum terremoto, tsunami? Teve alguma guerra? Alguma explosão? Mísseis nucleares foram disparados? Foi o início do fim do mundo?

Nada… Nem sequer um integrante dos Rôlin Instônis finalmente morreu.

O contrário, então, aconteceu? Acabou a maldade no mundo? A fome, a ganância, os preconceitos? Cessaram os conflitos mundiais? Veganos e carnívoros fizeram piqueniques juntos? O Tinder revelou de graça aos seus usuários quem curtiu o perfil de quem?

Também não…

O que houve foi que as luzes azuladas simplesmente desapareceram nos céus, da mesmíssima forma que surgiram. Só isso. Brilharam por exatas três horas, trinta e sete minutos, onze segundos — sim, algum corno cronometrou essa palhaçada — e, depois, se apagaram. Sumiram. Escafederam-se.

Agora… As discussões boçais, suposições furadas, teorias malucas; os detalhamentos das filmagens, estudos de caso, interpretações; as reprises, indagações, análises, menções, publicações, memes…

Infindáveis!

O planeta ficou parecendo com uma pós-projeção mundial e simultânea de bôrde bóquiz. Bãrdi Bóquise… Enfim… Aquele filme da netiflíquisse, com a Sandra Búloque, que ninguém entendeu bulhufas, mas geral ficou postando sua teoria ‘genial’ nas redes sociais, brigando com os coleguinhas, discutindo com a mãe, a sogra, o marido, o amante, o outro vizinho… E o canal de istrímin só aumentando seus lucros e rindo da cara de todo mundo.

Já eu, confesso que fiquei de boas na época. Mesmo porque, por incrível que pareça, estava todo mundo preocupado em desvendar os ‘mistérios do universo’, as razões da visitação dos etês invisíveis, o repentino surgimento e partida de visitantes interplanetários; enquanto eu, no meio de tudo aquilo, continuava era só pensando em como me dar bem com as gringuinhas gostosas, visitantes oriundas de outros países aqui da Terra mesmo.

Pelo menos, era isso que eu imaginava…

Ironicamente, como só o universo sabe ser, por não ter dado a mínima para os tais dos óbines, eu acabei foi caindo na armadilha deles. A minha empáfia destoante, motivada pela doentia fixação de molhar meu biscoitão numa xícara estrangeira, já havia chamado a atenção dos brilhosos antes mesmo das tais luzes aparecerem — não por acaso — bem em cima da minha casinha.

E, de certo, eles também já tinham planejado como agir nos outros locais, escolhendo previamente seus alvos. Eu penso que as primeiras vítimas tenham sido aquelas mais suscetíveis, por qualquer razão, a notar as alterações que o mundo passaria a apresentar, de forma quase imperceptível, após a chegada deles.

Pois, foi justamente a partir da observância de certos — na verdade errados — acontecimentos em meu entorno que, juntando-os, eu cheguei à indubitável conclusão de que muitas coisas estavam, de fato, se sucedendo de forma diferente do que antes era considerado como o ‘normal’.

O estopim foi um episódio inusitado ocorrido dentro do metrô, quando eu voltava de mais um dia estressante de trabalho, rumo ao meu muquifo. De repente, um odor pútrido surgiu no interior do vagão, como se viesse diretamente das profundezas do último círculo do Inferno — e o metrô não é tão fundo assim —, se espalhando por toda área do coletivo.

Em poucos instantes, o ar estagnado da composição ficou completamente tomado pelo cheiro calamitoso e covarde que passou a estuprar as narinas indefesas de todos os presentes, confinados naquele ambiente tenso e desconfortável, chegando a causar náuseas nas pessoas de olfato mais sensível.

Alguém havia soltado um tremendo peido ali dentro…

Certamente que o intestino responsável por liberar aquela aberração odorífica não poderia ser considerado normal, muito menos saudável, vista a podridão emanada através do esfíncter de uma criatura que, caso ainda estivesse viva, não deveria — e muito menos mereceria — continuar daquela forma por muito mais tempo.

O fato é que a flatulência dentro de um vagão de trem ou metrô, hermeticamente fechado e lotado, é um crime de difícil elucidação. E, infelizmente, muito mais comum do que qualquer sociedade moderna e justa desejaria que o fosse. Trata-se de um delito hediondo, rechaçado por toda a humanidade, porém totalmente sem castigo para seu anônimo autor. Todos pagam o preço e sofrem as consequências deste ato desolador e impuro; principalmente as próprias vítimas inocentes e, até então, indefesas.

Digo ‘até então’ porque, no momento seguinte ao mal-estar geral, causado pelo cheiro insuportável daquele peido atômico, um raio luminoso de tom azulado surgiu na composição e, em questão de milésimos de segundo, simplesmente desintegrou uma gringuinha linda, de vestido decotado e expressão blazê; para quem eu justamente estava olhando já fazia algum tempo, numa tentativa de fuga erótico-imaginária daquela malcheirosa situação.

Misturado ao raio azulado, que parecia ser um tipo de lêizer, havia também uma essência que logo se juntou à fumaça remanescente do processo, espalhando-se pelo vagão do coletivo e deixando um agradável odor de lavanda, permitindo assim a normalização dos movimentos respiratórios por parte dos passageiros.

O mais inusitado de tudo, no entanto, não foi nem o raio surgido sabe-se lá de onde, nem a desintegração espantosa da linda loira peidante, nem o inexplicável cheirinho gostoso de flores, que substituiu por completo o odor terrível antecessor… O estranho, mesmo, foi o fato de que absolutamente nenhum dos presentes se importou com nada daquilo.

Não, não estou me referindo à flatulência estrangeira, invasora e fétida, pois isso todos sentiram no âmago de suas almas e pulmões; mas sim ao fato de ninguém estranhar que aquele misterioso raio tenha dizimado por inteiro um semelhante, apagando imediatamente da existência uma deusa de olhos azuis e, ok… intestinos negros; mas ainda assim uma vida.

Ninguém sequer se assustou ou lamentou o desfecho fatídico ocorrido. O assassinato de uma moça cujo gosto reprovável por diânqui fúdi acabou significando sua sentença de morte. E uma sentença abaixo-assinada por todos os presentes àquela execução sumária.

Pelo contrário; era possível perceber nas expressões dos demais passageiros uma sensação de regozijo, de justiça feita, de satisfação… Pois aquele cheirinho de flores perfumadas ainda trazia uma paz, plantava um sentimento de aconchego e naturalidade na mente de cada um ali dentro.

Entretanto, foi nesse momento que me dei conta de que eu também fazia parte daquele grupo de algozes. Eu também havia desejado, mesmo que inconscientemente, que o autor pagasse, e pagasse caro, por seu ‘crime’.

“… uma criatura que, caso ainda estivesse viva, não deveria — e muito menos mereceria — continuar daquela forma por muito mais tempo.”

É claro que eu presumi um velho ranzinza, grosso, escroto, mau-caráter, pedófilo e botafoguense, como sendo o promotor daquele odor podre; jamais suporia que a galeguinha com a qual eu fantasiava estar transando ardentemente no chão de uma fábrica de incensos indianos — “sonho meu…” — seria capaz… daquilo.

Então, ao deixar a estação ainda muito abalado, decidi afogar num bar próximo de casa a culpa que pesava em minha consciência; já planejando a menor distância para depois arrastar meu corpo, igualmente devastado, de lá até a minha cama.

Não sei explicar bem a ordem dos acontecimentos seguintes, mas em algum momento durante a expiação de meus pecados, um grupo jovem e animado de gringas adentrou o bar e acabou ocupando a mesa bem ao lado da minha. Aparentemente, em consequência da lotação do estabelecimento.

Nem preciso dizer que isso fez meus planos — e o restante da noite — mudarem da água para o vinho. Ou, melhor dizendo, das cervejas para as caipirinhas. Muitas caipirinhas. Dessa vez, as turistas gostosas não iriam pensar que minha aproximação estratégica poderia se tratar de um assalto, sequestro ou coisa do tipo…

Era ainda meio do mês e a carteira estava mais fina do que as minhas canelas, mas o fato é que o neguinho aqui, mesmo duro e desnutrido, bancou foi o Onássis pra cima daquelas branquinhas apetitosas, criadas à base de corne flêiques.

Mai nêime is Maicon endiu arol biltiful; saiu de repente, após o garçom dar início aos trabalhos. E elas riram. Um riso diferente. Não era de medo. Nem de deboche. As loirinhas me entenderam perfeitamente. Iti uós trú; dei uãr laiquin mi… Até minha mente passou a ‘falar’ no idioma delas.

Uáti zor nêimes; arrisquei de novo e elas responderam, com aqueles olhinhos claros como o céu mais limpo de verão. Quétlin, Rãna, Êmili e Rêitiel eram os nomes das princesas; e elas eram mesmo maravilhosas. Estavam interessadas; estavam tólquin uifemi. Parecia um sonho tudo aquilo… Emai drimin? E elas riram ainda mais alto; ainda mais gostoso.

Sim, era verdade. Eu estava não apenas falando, mas também flertando iníngliche com aquelas gringatas. Não me recordava de já ter interagido daquela maneira antes, e com tanto sucesso, em toda minha vida; nem mesmo em Português. Contei que morava ali perto, perguntei se elas gostariam de ir até o meu cafofo para continuarmos aquela prosa promissora em um local mais, ahm… Privativo, exclusivo.

Enfim…

Desenrolava com tamanha facilidade, tanta fluidez e malandragem, que chegou num ponto que nem era mais preciso falar. Os olhares já faziam isso. E as respostas eram sempre positivas, sempre incisivas. Ié, Maicon… Gudai dia; létis gôunal!

Lembro que no trajeto rumo a minha casa, porém — mais precisamente após deixarmos as ruas principais e dobrarmos numa viela escura de paralelepípedos, que nos levaria até o destino final daquela noite improvável —, uma delas parou, ficando para trás. Provavelmente, por ter readquirido a razão.

Mas, tudo bem… Mesmo com uma perda em meu jardim, restavam ainda três lindas rosas para eu despetalar! Nada mal para um jardineiro de meia tigela como eu, acostumado a somente adubar a terra. Eu não tinha nada a reclamar…

A não ser do fato que, segurando-me cada vez mais forte, o trio remanescente passou a me arrastar pelo caminho, demonstrando obstinada pressa. Tentei fazê-las diminuir o ritmo. Em vão… Os passos ainda se aceleraram e, por mais força que eu fizesse, não conseguia vencer a pressão surreal imposta pelos braços delas.

Subitamente, um intenso facho de luz azulada surgiu pouco atrás de nós, no alto, projetando, no entanto, apenas a minha sombra nas pedras do chão. Creio ser desnecessário citar, mas a língua acabou não sendo o único órgão meu a amolecer naquele fim de noite inesperado…

Minha derradeira noite no planeta.

Sugado pela luz, flutuei como se estivesse dentro de uma bolha de sabão azulada. E continuei subindo, avistando telhados, árvores, quintais, carros, ruas, arrastões… Depois bairros, cidades, países inteiros. Tudo ficando menor e mais longínquo. Até que, antes da penumbra sideral surgir no enorme horizonte, pude enxergar toda crosta terrestre.

E, sim… A Terra era mesmo plana.

Já na imensidão fria do Espaço, outra constatação impensável invadiu minhas retinas. Vi os rostos lindos de Rãna, Quétlin, Rêitiel e Êmili olhando atentamente para mim… Suas faces foram se juntando, até formarem um único e conhecido semblante.

Era a loira do metrô, cujo par de olhos brilhou num tom azul celestial — intenso e vívido como um raio — ao pronunciar meu nome de maneira enfática, separando-o significativamente em sílabas:

My con

Fazendo assim com que, dessa vez, fosse o meu esfíncter a sucumbir.

* * *

O autor

* Ricardo Gnecco Falco é jornalista, músico, escritor e produtor editorial.

Autor dos livros “Literatividades – Contos Escolhidos” (Antologia, 2013) e “Subterfúgio” (Romance, 2012); Organizador das antologias “Desencontos” (2011) e “Rede de Contos” (2010); além de Fundador e Editor-chefe da Seu.Livro.Pronto, produtora especializada em Publicação Independente.

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Contos

A Pizza

por Ricardo Gnecco Falco

Bia faz tudo tão rápido que Bruno sequer percebe a manobra.

— Conseguiu? — dirige o olhar e a pergunta para a esposa, a deslizar o polegar com desenvoltura sobre a tela do celular que ela havia lhe pedido emprestado.

— Não. O seu não conectando, também… — cola a palma da mão livre na mão estendida pelo marido, sobre a mesa do restaurante.

Estão em um shopping, próximo ao apartamento onde moram. A praça de alimentação se encontra lotada e, mesmo com a fartura de opções gastronômicas, parece não conseguir dar vazão ao apetite da enorme quantidade de clientes.

É fim de tarde, a hora mais procurada. Se Bruno não houvesse chegado mais cedo, estariam ambos agora em alguma das diversas filas formadas por ali. E com muita, muita fome.

Ele era professor de História, docente em uma grande universidade federal. Iniciara a carreira pedagógica aos vinte e sete; mesma época em que conhecera Bianca, com quem se casaria dois anos depois, no dia tido por ele como o mais feliz de toda sua vida.

Já Bia era seis anos mais nova do que o esposo e, nas vésperas de completar só agora as vinte e nove primaveras, poder-se-ia dizer que vivia o auge. O apogeu de sua plenitude e beleza.

Era assim que Bruno a via. E todo este esplendor se estampava no semblante admirado do esposo, a se questionar internamente sobre como havia ele conseguido tudo, e tanto, em tão pouco tempo de vida.

Não que se achasse feio… Muito menos desmerecedor, pois sempre buscara se cuidar e praticara o bem. Mas, ter como sua mulher e futura mãe de seus filhos aquele pedaço perfeito da criação divina que vislumbrava bem a sua frente, realmente, ultrapassava todas as mais abrangentes expectativas que ousara ter na juventude. Hoje, aos trinta e cinco anos, considerava-se um cara de sorte. Muita sorte.

Ter conhecido Bia, naquela pequena viagem de final de semana, era para Bruno como ter encontrado um bilhete de loteria premiado.

A banda de um amigo iria se apresentar numa casa de shows de Juiz de Fora e ele, estendendo até o alto da serra as comemorações pela conquista do almejado emprego naquela instituição de ensino renomada, aproveitaria a oportunidade para conhecer a cidade.

Assim, dessa forma quase que por acaso, Bruno acabou encontrando o grande amor de sua vida. Aquela que seria sua esposa, sua companheira eterna, sua cúmplice… Sua musa.

“Você é muito gatinha… Gostei de ter lhe conhecido. Já estou com saudades dessa boquinha gostosa! Rô.”

Bia chamava atenção, mesmo. Tinha um corpo muito bonito. Pernas longas e bem torneadas, seios e sorriso fartos; simpatia na medida exata de uma sensualidade tão latente quanto incerta.

Sabia, desde pequena, que despertava o desejo dos homens. A genética da família era emancipada e, aos dezesseis, já lhe permitia adentrar em estabelecimentos destinados a maiores de idade, sem a menor necessidade de apresentação de comprovantes. A prova era ela.

E todos queriam prová-la…

Aos dezessete começou a trabalhar; um estágio numa loja de vestuário para ginástica. Deu tão certo que, em seis meses, já ganhava mais do que as funcionárias mais velhas, efetivadas. Chegava a ser covardia com o ávido público, e mesmo com suas colegas de trabalho, colocá-la para atender os clientes dentro daquelas roupas apertadas que, a cada nova remessa, se esgotavam na metade do tempo.

Mas nem só de glórias sua precoce vida profissional fora marcada. O envolvimento com o dono da rede de lojas lhe rendeu muito mais do que uma merecida promoção recebida, ao completar a maioridade…

Casado e pai de duas crianças, o chefe não teve outra opção a não ser a de acatar a condição imposta carinhosamente pela esposa, ao tomar conhecimento do real conteúdo das ‘reuniões de negócios’, cada vez mais frequentes, do marido.

Foram tempos difíceis para a moça, pois cidades pequenas não costumam deixar assuntos como este sem a indevida atenção. Atenção e repercussão.

Bia conheceu muitas pessoas nesta época conturbada de sua vida, pois os efeitos colaterais do boca a boca ocorrido não propiciaram boas oportunidades para o desenvolvimento de grandes virtudes. Bia ainda não sabia, mas a imensa maioria dos homens que dela se aproximavam, nesta intensa fase, já tinha ouvido falar sobre ela. E era exatamente nesta posição que eles desejavam terminar.

E, geralmente, terminavam.

Claro que nem toda menina sonha em encontrar um ‘Príncipe Encantado’. Mas, Bia encontrou muitos… Aos vinte e um deles, completou vinte e um anos de idade. E tomou a decisão de parar de acreditar em contos de fada. Não era mais uma menina. Era adulta; vivida. Desejava algo mais. Algo a mais… Mais do que tudo aquilo que já havia experimentado.

De fato, gostava de ser cobiçada pelos homens. E do fato de ter aprendido a satisfazê-los. Era bom. Bom ter este poder; poder ter este saber. Saber corresponder a este querer. Ser almejada…

Mas Bia queria mesmo era ser amada.

Então surgiu Bruno; educado, inteligente, culto. Era da cidade grande; professor. Simpático, alegre, diferente… Respeitador. Tinha um sorriso bonito, sincero. Um brilho no olhar. Boca carnuda… Não tentou beijá-la. Devia ser casado. Não; não era. Mas não tentou beijá-la. Flagrou-o olhando para o seu decote; uma, duas vezes. Mas não tentou beijá-la. Nem quando ela ficou olhando para ele; para a boca dele. Focando… Não tentou beijá-la. Nem quando ela se aproximou do rosto dele; focando…

Nem tentou beijá-la!

Trocaram mensagens por celular a semana toda. Ela havia pedido o número dele no final daquela dançante noite. Ele mandou mensagem no dia seguinte. Ela respondeu. Ele respondeu. Correspondeu. No final de semana posterior ela desceu a serra. Ele a encontrou na rodoviária. Apresentou-lhe a Cidade Maravilhosa. Baía de Guanabara, Pão de Açúcar, Copacabana, Ipanema… Urca. Contou-lhe a história do Forte, do museu, do bairro, da cidade… Encantou-lhe. Mas, não tentou beijá-la. Logo ela, que não era mais uma menina. Era adulta; vivida, desejada…

Desejante.

O beijo só aconteceu na rodoviária, instantes antes de embarcar de volta. Boca carnuda… O gosto que ficou com ela a viagem inteira. A semana inteira. Por inteiro. Era tão bom… E tão pouco. Bia desejava mais. A semana passou, lenta e arrastada como uma ampulheta gigante. Bia sangrou rios de areia, até o esgotar da ausência que, correndo em sua direção, extinguira-se. Bruno havia subido a serra, novamente. Saíram de carro e o domingo de folga passou como uma brisa. O passeio na praça, o cinema, o jantar…

O vinho.

Já era madrugada quando o carro parou, uma quadra antes da residência de Bia, a pedido dela. Era a despedida. Tão perto agora e tão longe depois. A distância crescendo na exata proporção da ideia do vindouro girar de números no painel do carro de Bruno, após deixá-la. Bia não queria sentir novamente aquele vazio. Queria vazão. Dar vazão a tanto desejo acumulado na contagem dos dias passados e já de novo soturnamente vislumbrados.

Tão perto agora e tão longe depois…

Bruno sentiu as mãos audaciosas da jovem em sua cintura e os beijos não mais se limitarem à carne mole de seus lábios. Nem a considerável inércia do rapaz pareceu intimidar a decidida moça que, a partir daquele momento, dele desfrutou como um Oásis no deserto.

Repreensível ou não, o fato é que o ato aconteceu ali. E Bruno, mesmo não esperando por tudo aquilo, também sua sede abrandou. Tanto, que logo após o bater da porta aberta por Bia, voltando-se novamente para ele, não mais demonstrava assombro; mas sorria.

O beijo de despedida recebido em seguida foi estranho. Como um pacto. A língua a selar com cera quente a paixão da carta sem palavras redigida ali. Um Atestado de Bia. Bruno não falou nada; apenas concluiu. E Bia, naquele veículo, contara-lhe…

Tudo.

Mesmo historicamente possuindo importantes significados, toda a desenvoltura demonstrada por Bia foi imediatamente transformada em ‘segredos de guerra’. E Bruno, melhor do que ninguém, sabia que o registro oficial dos fatos sempre é feito pelo lado vencedor.

Exatamente como o professor se sentia naquele momento.

Novos desafios profissionais, intensas experiências passionais… Tudo novo. Renovado. Um ímpeto compartilhado que de pronto anuviou não penas a racionalidade de Bruno. Poder ter alguém com tamanha impavidez ao seu lado, com quem dividir suas vitórias, anseios, descobertas, expectativas e sonhos, parecia-lhe ser a realização plena de todos seus planos. Planos de completude. E, em menos de um mês, seu coração também já era inteiramente dela.

Pena que morassem tão longe.

Por isso, já com emprego e namorada dos sonhos, não demorou muito até que, aproveitando a ótima fase profissional, ele convidasse Bia para jantar em um elegante estabelecimento onde, ao final da noite, lhe entregaria a caixinha de veludo e, de joelhos como nos filmes, lhe faria ouvir a pergunta responsável pelo próximo passo que dariam.

Juntos.

Foram apenas seis meses até Bia conseguir um emprego no Rio, onde iniciaram a vida a dois. Já noivos, fizeram o chamado “test drive” por quase dois anos até, finalmente, trocarem de mão os anéis, símbolos do compromisso previamente assumido e, então, reconfirmado.

“Você é muito gatinha…”

Bianca acrescentou ao próprio nome o sobrenome de seu, agora oficial, esposo. Nem precisava, mas fizera questão de alterá-lo, conforme a lei lhe permitia. Havia também, com aquele ato, apagado de sua vida um pregresso hiato; enterrando ali um incômodo histórico de sua latente personalidade.

“…Gostei de ter lhe conhecido.”

Transformara-se em uma nova mulher. Mulher casada, respeitada, bem falada, querida… Amada. Ganhara um novo nome, uma nova biografia. Uma nova vida. A liberdade do ‘anonimato’ de um novo ciclo; uma nova Bia, numa nova cidade. Novos amigos, novas oportunidades. Um promissor futuro. Sem famas, sem manchas, sem sombras.

Sem fantasmas.

“…Já estou com saudades dessa boquinha gostosa!”

Bruno realmente a amava. Fazia tudo por ela. Com ela. Para ela. Os primeiros anos, sempre funcionando como o termômetro das relações, foram a deliciosa época das descobertas. De ambos os lados.

De tão diferentes, chegaram mesmo à complementaridade.

Bruno era o pensamento, a reflexão, o planejamento… O pé no chão. Mais polido, pensava muito antes de fazer e falar, analisando com atenção os cenários, reações e movimentações em volta.

Bia era o oposto disso tudo. Espontânea e ativa demais, estava sempre “ligada no duzentos e vinte”, como Bruno costumava dizer. Fiel representante da ação inconsequente, do puro agir… Do ato.

“…Rô.”

— É… sem rede, mesmo. — Bia devolve o aparelho para o esposo.

A pizza chega no mesmo instante.

— Ah… Depois me lembra de te contar sobre uma mensagem maluca que eu recebi no celular… — Bruno pede enquanto termina de reforçar o corte do primeiro pedaço, que logo em seguida coloca no prato da mulher.

Bia, forçadamente, demora um tempo até perguntar:

— Que mensagem? — fala, aplicando um tom casual na frase.

Bruno agora se serve.

— Uma que um carinha me mandou por engano. Eu até guardei ela pra te mostrar… — diz, rindo, enquanto parte com o garfo um filete de queijo derretido que havia se esticado entre a borda da bandeja e o seu prato.

Bia dá um longo gole no suco de laranja, recém-trazido pelo garçom. Seus olhos passeiam de um lado para outro, várias vezes, enquanto seca os lábios com o guardanapo. Então, de forma mecânica e sem falar mais nada, volta a comer.

O casal repete e, ao final do segundo pedaço, ainda em silêncio, Bia observa atentamente quando o esposo pega o celular sobre a mesa e começa a mexer no aparelho.

— Ué… — Bruno parece confuso.

— O que foi? — ela tenta, com muita dificuldade, não transparecer tensão.

— Não achando… — o esposo coça a barba enquanto, com a outra mão, continua a tocar na tela de seu smartphone, repetida e improficuamente. — Não entendo…

— Você deve ter apagado depois que leu, Bruno… — Bia sugere, com o mesmo tom casual de antes.

— Não, amor… — o rapaz insiste na procura. — Eu estava relendo a mensagem agora há pouco aqui, enquanto esperava você chegar…

A informação deixa Bianca completamente absorta. O esposo, recalcitrante, prossegue na busca, com o polegar já doendo:

— Que doideira! Como é que pode uma mensagem sumir assim? — Bruno indaga a si mesmo.

— Eu não… Sei…

Bia não consegue mais dominar o medo. Se não houvesse se antecipado; se não tivesse agido por impulso; talvez ainda desse para…

Não!

Não dava. O fato é que Bia já havia dado mole na noite anterior, conforme ela mesma suspeitava e confirmara logo ao chegar ali. Tinha mesmo passado o número do esposo para o carinha da boate, num etílico e imperdoável… ato falho! No entanto, foi ao deletar aquela até então improvável prova que Bia, ironicamente, delatara-se.

Bruno desiste de repetir, em vão, as inocentes operações em seu aparelho, colocando-o de volta sobre a mesa.

— Isso é impossível! — ele busca amparo, no rosto de sua amada, pelo inexplicável sumiço da mensagem; só então percebendo a estranha mutação ocorrida naquele outrora angelical par de olhos castanhos.

De dilatadas pupilas…

* * *

O autor

O autor

* Ricardo Gnecco Falco é jornalista, músico, escritor e produtor editorial.

Autor dos livros “Literatividades – Contos Escolhidos” (Antologia, 2013) e “Subterfúgio” (Romance, 2012); Organizador das antologias “Desencontos” (2011) e “Rede de Contos” (2010); além de Fundador e Editor-chefe da Seu.Livro.Pronto, produtora especializada em Publicação Independente.

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Contos

Dentro do Peito

por Ricardo Gnecco Falco

É impossível mensurar a real importância de algo na vida de alguém a não ser, exatamente, por sua falta.

Só se conhece o autêntico valor de alguma coisa, portanto, após seu respectivo fim; quando — e somente então — revela-se em plenitude diante da própria inexistência.

Em outras palavras, é no findar-se que, algo ou alguém, pode ter sua subjetiva representatividade corretamente compreendida. O perfeito ‘quanto’ e o exato ‘como’ tal coisa, ou alguém, se relacionava e era importante na vida de outrem.

E, para aguçar ainda mais essa dramática constatação, a preciosidade que se descobre de fato extinta da própria vida não é carinhosamente retirada; ou removida com algum tipo de preparo. Ela geralmente é arrancada à força, extirpada. Oriunda de uma repentina poda; uma inesperada amputação emocional.

Portanto… Apenas DEPOIS de consumada a perda é que se torna possível a alguém saber que aquilo que (já) se foi perdido era, justamente, o que de mais precioso se tinha na vida.

Pois, bem. Dito isso…

Foi exatamente assim que Augusto descobriu o tamanho do buraco em seu peito; a profundidade daquele vazio que passou então a habitar o seu ser. Conhecera o lado oposto da plenitude, o antônimo da perfeição; e agora enfrentava a concretude fria de uma realidade imutável.

E terrível…

Marcela não preencheria mais de vida o seu mundo, não faria mais parte de seus dias, da melhor parte de sua biografia; da porção mais rica, mais clara, mais bela. Não coloriria mais o horizonte com sua voz, sua luz; com a saudosa leveza de uma aquarela repleta de tons e semitons; de um inigualável fulgor.

O mundo, seu mundo, entrara em colapso. Augusto estava preso no interior de si mesmo; rompido, partido, tolhido. A dor e a angústia minando, a cada segundo, um pouco mais do que lhe restara das lembranças dela; das boas lembranças de Marcela.

Dentro do peito ecoavam seus passos, agora relapsos, tentando silenciar de vez seu abatido coração; os gritos em forma de murmúrios que a emoção não mais emanava. Apático, Augusto não demonstrava mais sinais. Sentimentos, reações, expectativas… Nada.

Entregara-se.

Restavam somente lapsos; as últimas imagens mentais de sua amada, ainda respirando, e que lhe arrebatavam a memória. O rosto lindo e angelical de Marcela; de proporções tão áureas que chegavam a desafiar os limites da beleza. Mesmo em meio a tantos fios, agulhas, tubos plásticos e instrumentos de aço… Sua face brilhava, ofuscando todo e qualquer dissabor.

Marcela jazia em cima daquela plataforma metálica como se fosse uma oferenda sobre um altar; ofertada aos deuses da ciência humana por íncolas de jaleco branco que, por tanto tempo, a cercaram e espetaram. Tudo em vão… Todos indignados, descontentes com o improfícuo resultado de tantos estudos, feitos ao longo de suas frustrantes vidas, e que ali, diante daquele espécime indubitavelmente mais fraco, mostraram-se inúteis.

Tantos conhecimentos adquiridos, tantas pesquisas, livros, cursos, seminários… E nada do que sabiam — ou acreditavam saber — pôde salvar Marcela. Infrutíferas técnicas de ressuscitação humanas foram em sequência adotadas e, então, abandonadas. Nenhuma das diversas especialidades, prêmios, medalhas e diplomas lhes dera a resposta; sequer lhes apontara a direção correta. O caminho certo, o ponto de destino, a meta… Não viram. Não sabiam. Sequer imaginavam.

Não sentiam.

O apito metálico, e afinal constante, formara bem no centro do enorme monitor uma linha verde e inalterável. Uma vastidão negra e fosca, separada agora pela metade; cortada em dois idênticos pedaços geométricos. Aquela linha contínua dividia não apenas a tela do aparelho, mas também — e com perfeita exatidão — demarcava a subjetiva representatividade da subsequente ausência de um ser amado… na vida de um ser amante.

Marcela estava morta. Seu coração havia, finalmente, parado. O sangue estacionado nas veias, o ar empacado nos pulmões; as pupilas dilatadas, as pálpebras semicerradas…

A imutabilidade da morte abraçara o grande amor da vida de Augusto, levando-o a um dilemático paradigma existencial, ao qual já estava fadado desde que por ali chegara.

O abraço fatal desferido pelo destino arrancara Marcela da existência e, como Augusto acabara de descobrir, a dor extrema e inigualável resultante daquela imposta amputação o fizera extirpar, de dentro de seu próprio peito, o órgão e ícone máximo da plenitude humana.

O coração.

Ao experimentá-la finalmente em completude, Augusto se viu obrigado a extrair de seu ser, exatamente, a humanidade. E, numa ruptura paradigmal, tornou-se naquele momento o mais humano dos seres não humanos de todo o vasto universo…

Marcela abriu os olhos e suas pupilas diminuíram de tamanho, em resposta à luminosidade intermitente do soturno ambiente. Enxergava tudo em meio a uma névoa leitosa ainda, intensificada pela brancura dos azulejos que revestiam as paredes e o teto daquele lugar.

Tentou mexer os braços, mas percebeu não dispor de espaço para isso. Estava dentro do que parecia ser uma caixa de metal. Olhou para as bordas e viu que as mesmas possuíam corrimões, ou puxadores, que se estendiam paralelamente e adentravam o vão da parede, por trás de onde sua cabeça repousava. Não… Aquilo era uma gaveta; sem dúvida. Ela se encontrava deitada dentro de uma estranha e comprida gaveta aberta.

E estava nua.

Marcela firmou as mãos nas laterais metálicas e, fazendo um pouco de força, conseguiu erguer as costas, sentando-se sobre a base. Estava muito frio ali e boa parte da névoa, que ainda dificultava sua visão, vinha exatamente de dentro do armário do qual ela parecia ter sido puxada. Havia várias outras gavetas na parede, todas fechadas, com trancas semelhantes às de geladeiras frigoríficas de açougues.

Saiu com relativa facilidade dali de dentro, erguendo o corpo com desenvoltura, e se pôs ereta ao lado do cacifo de aço. Percebeu algo preso ao seu pé, parecido com aquelas etiquetas de lojas de roupas, cujo barbante envolvia seu dedão esquerdo. Livrou-se da incômoda tarja com a ajuda do outro pé e, tremendo devido ao ar gelado que lhe arranhava a pele desnuda, empurrou o alongado compartimento, fazendo-o deslizar de volta para dentro da parede. A névoa fria foi se dissipando e, passados alguns instantes, Marcela reconheceu a silhueta surgida pouco à frente, de costas para ela.

Era Augusto, seu noivo. Ele estava parado no que parecia ser o centro daquela sala. Tinha acabado de vestir uma camisa, que foi também reconhecida por ela. Aparentemente, começava a abotoar a vestimenta, de baixo para cima, quando então a luz fluorescente, antes falhando, acendeu-se por completo no teto, extinguindo não apenas os resquícios da neblina de gelo, mas clareando também até mesmo os mais recônditos recantos da mente de Marcela.

E tudo veio à tona, como em um relâmpago.

A descida da serra durante a madrugada, debaixo daquele aguaceiro todo; o intenso nevoeiro na estrada de volta para casa; as lágrimas borrando a maquiagem e irritando seus olhos; a terceira taça de vinho sorvida, antes do espatifar do cristal sobre o rosto daquele patife; o sorrisinho sarcástico surgido no canto daquela boca cínica; o sentimento de raiva, ódio, impotência; a vontade de socar, cuspir naquela cara; vomitar naquela cama; desafundar daquela lama…

Um flash do carro perdendo a aderência depois da curva; as mãos brutais lhe girando a cintura; a traseira derrapando sobre o asfalto molhado; a força dele lhe impedindo, impelindo; o pedal do freio sendo pisado, forçado, maltratado, humilhado, penetrado; a violência do impacto; o corpo sendo jogado para frente, para trás, para frente, para trás; o sangue, a ardência, o suor pingando, escorrendo, babando; sufocando, esfolando, batendo, espremendo; ejaculando… Sorrindo.

A atração, o flerte, a traição, a surpresa; o agir inconsequente, a desilusão, o medo; a capotagem, o cinto pressionando seu pescoço, apertando; o vidro estourando, a carne cortando, a cabeça arranhando, entrando; a porta abrindo, quebrando; o anel brilhando, a mão torcendo; a chuva molhando, sangrando; a aliança desfeita, o carro girando, rodando, rondando, golpeando, lambendo, fincando, trincando; afundando. O frio, a noite, a lama… A escuridão.

Marcela Ignácio Baptista — 23 de Agosto de 2018 — 06h.04m. — Falência cardíaca.

Era o que estava escrito na etiqueta que tirara de seu pé e que ela agora lia. Em seu pulso direito também havia uma pulseira de papel, com as iniciais de seu nome, uma logo e as letras C, T e I. O relógio na parede em frente, oposta ao gaveteiro de onde havia acabado de sair, indicava as horas. Doze e dezesseis.

Marcela estava suja; manchada. Seu sangue, ressecado, espalhado pelo corpo, melecado; violado. Aquela sala fria e fúnebre fazia parte de algum hospital. Era para lá que as carcaças, sem o recheio da vida, eram levadas.

Àquelas gavetas se destinavam os vazios, os que sucumbiram; estavam reservadas aos que, como ela, não resistiram. Representavam a última parada antes da eterna morada. O postumeiro local visitado por aqueles cujos pecados já haviam sido julgados no grande e derradeiro tribunal…

Seu noivo permanecia de costas para ela, abotoando a camisa em um ritmo bem mais lento do que a sequência de flashes e fragmentos de memórias que assolavam a caótica mente de Marcela naquele confuso momento.

Lembrava-se de quando conhecera Augusto, oito anos atrás. Ele estava na mesma posição; de costas, parado na frente da jovem. Ela aproximara-se por trás e, num rompante etílico, tapara-lhe os olhos.

— Quem sou eu? — ela forçou a voz para um tom bem mais grave, falando ao pé do ouvido do solitário rapaz que, desde que chegara à festa, não havia ainda se enturmado com ninguém.

Passaram-se alguns segundos, de intenso silêncio.

— Quem sou eeeeeeu? — insistiu ela, agora mudando para uma voz extremamente fina e estridente.

— Uma mulher — respondeu, finalmente, o jovem.

Hmm… Parabéns! — Marcela retornou ao tom natural, mas ainda pressionando as mãos sobre os olhos do rapaz — E que tipo de mulher eu sou? — completou.

A resposta surgiu mais rápida. E direta:

— Do tipo extrovertido.

— Nossa! Você é mesmo um grande adivinho! Estou impressionada com o seu poder quase sobrenatural, rapazinho! — ela mergulhava na ironia.

— Obrigado.

Hmm… Vejamos… — Marcela pensou por alguns instantes, antes de sugerir — Diga alguma coisa agora que eu não saiba! — desafiou, enfatizando o óbvio.

O rapaz franzino ergueu os braços e pousou as mãos sobre as costas das mãos dela, retirando-as de seus olhos. Depois se virou e, encarando-a pela primeira vez, disse:

— Existe vida fora do seu planeta.

Marcela riu daquela frase, que lhe soou como uma piada nerd.

— Mas nós somos beeeem legais… — completou o jovem, olhando-a nos olhos e imitando o tom de voz estridente que ela havia utilizado antes.

Até o momento daquela divertida interação, Marcela nem sabia se achava o solitário rapaz — que vinha observando de longe, na festa, já fazia algum tempo — bonito ou feio; interessante ou repulsivo; desejoso ou desprezível; instigante ou fatigante.

No entanto, aqueles olhos estranhos despertaram algo denso dentro dela. Continham intensidade, mas não eram dotados de desejo, de malícia; de posse. Era um jeito de olhar muito diferente de todos os outros olhares que Marcela já recebera. Era algo mais profundo… Talvez exatamente por isso tenha sido tão apaixonante. E irresistível.

Aquela troca a fizera perceber um poder até então desconhecido. Uma força universal e transformadora capaz de mudar o rumo de sua vida; de alterar os rastros de sua história; modificar seu próprio destino. Aquele olhar fizera Marcela, verdadeiramente, sentir-se…

… Nua.

— E-eu m-morri, Augusto?

Marcela tremia muito, mas não era mais de frio.

— Sim.

Augusto permanecia inalterado.

— N-no aci-acidente?

— Não, Marcela. Seu coração parou de bater, de vez, lá em cima; no centro de tratamento intensivo do hospital, seis horas atrás.

Aquela câmara mortuária, onde definitivamente estava, devia ficar no porão do prédio, vista a ausência de janelas ou de luz natural. Aliás, nada ali parecia ou soava natural para ela. Mas era fato. Era real. Estava acontecendo.

Marcela sentia as lágrimas, trêmulas, saltarem de suas pálpebras e percorrerem um curto trajeto sobre as bochechas, até salgarem as reentrâncias de seus lábios, também estremecidos.

— C-como você est-está me ouvindo, ent-então?

Augusto permanecia em silêncio, mais entretido em finalmente terminar de fechar os botões da camisa e, só então, virou-se — indiferente — na direção da noiva, paralisada e de olhos estupefatos a encará-lo.

— Você p-pode me ver tamb-bém?

— Claro que sim, Marcela. Você está de pé, bem na minha frente.

— Eu não… N-não entendo…

Augusto se aproximou. Marcela não reconheceu aquele olhar. Havia algo diferente nos olhos dele, como se faltasse algo.

— Entendi. Você está achando que é um espírito; que desencarnou.

Não continham emoção; muito menos empatia.

— Eu…

— Você estava morta; mas agora está viva.

Totalmente apático.

— Mas… — Marcela não compreendia — Como? C-como isso é possível?

— Eu te trouxe de volta.

A lâmpada tornou a falhar, no teto, fazendo-a recordar-se do acidente. A sirene, as luzes piscantes. A dupla de socorristas; a maca, o cobertor térmico. O anel de noivado…

— Você aceita se casar comigo, Marcela?

Que vergonha! O restaurante inteiro olhando para ela. Esperando, vigiando, pressionando; intimando.

— …Aceita, meu amor?

Morar junto havia se mostrado uma grata surpresa. Dividir com alguém o mesmo teto, banheiro, cama; desejos, anseios… Limitações. Mas Augusto era o companheiro dos sonhos, o cônjuge perfeito. Carinhoso, atencioso, prestativo, parceiro; confiável, dedicado…

Fiel.

Tão correto, justo, bom, amável; espiritualmente elevado… Tanto que Marcela, de uma hora para outra, descobriu finalmente o que não sabia sobre ela mesma. Conheceu não apenas o que não era, mas, comparativamente, a plenitude do que jamais seria.

Concretude.

Marcela percebeu, após certo tempo, que tal fartura, na prática, não mais lhe aprazia. “Fartava-lhe” algo… Marcela não se reconhecia mais no primor daquela relação. Surgira algo diferente dentro dela; um inexplicável — e inexorável — vazio. Uma latente apatia, só então revelada.

Abastando-se do que jamais lhe satisfazia, envaidecia-se. Sabotava-se… Encaixava-se no descabido. Cobiçava o perigo, almejava a insegurança; infringia. Ambicionava o desequilíbrio, a perda do autocontrole; a inexatidão do incerto. Inspirava a própria falha, fundamentando seus atos na crença de que somente a transgressão poderia sanar, da forma mais insana possível, seus mais secretos anseios.

Sete anos morando juntos, quando Augusto lhe estendera a mão com aquela caixa de veludo azul. Jantar romântico; restaurante chique, joelho no chão; sorriso no olhar. Noivado, casamento; depois viriam filhos, cachorros; fraldas sujas e sofás manchados… O clichê.

— …hein, amor?!

O restaurante inteiro olhando para ela. Esperando; vigiando; pressionando; intimando. Julgando…

— Você está me ouvindo, moça?

Luzes piscantes; falantes…

— Qual o seu nome? Tenta ficar acordada! Não dorme!

O cobertor térmico, a maca…

— Quer que a gente ligue pra alguém? Moça? Não dorme!

A dupla de socorristas; a sirene…

— Ela não ouvindo!

— Vai na agenda; pra quem ela ligou por último. o nome; se aparece…

Peraí

O anel brilhando; a caixa azul aveludada…

— Fernando? Hey; moça… Não dorme! Podemos ligar pro Fernando pra avisar? É seu esposo, moça? Tenta ficar acordada! Fernando é o seu esposo? Podemos ligar pra ele?

— A aliança na mão direita… Deve ser o noivo dela.

— Eu aceito!

Aplausos no restaurante.

O companheiro dos sonhos, o cônjuge perfeito. Carinhoso, atencioso, prestativo, parceiro; confiável, dedicado… Fiel.

— Eu te trouxe de volta.

Augusto, ou o que parecia ser Augusto, não havia fechado os dois últimos botões da camisa; Marcela percebeu as estranhas marcas na pele dele, parcialmente à mostra, pouco abaixo do pescoço.

— Mas… C-como?

— O seu coração parou de bater. Trouxeram você aqui para baixo. Esperei os funcionários saírem para o almoço e…

A apatia.

— …troquei de coração com você — o noivo completou, deixando Marcela afoita, como se lhe faltasse ar nos pulmões.

— Isso… Isso é impossível, Augusto! — relutou, buscando apoio no armário gelado de onde saíra há pouco.

— Não para mim.

As pernas da jovem ficavam cada vez mais bambas. Elevou a mão esquerda à altura do peito e, hesitante, tocou a própria pele, sentindo as pequenas reentrâncias na região. Não teve coragem suficiente para olhar. Tentou encontrar auxílio na Lógica, observando o entorno à procura de algo que fosse capaz de lhe tirar daquele pesadelo; de fazê-la acordar.

Mas, tudo a sua volta apenas lhe trazia a certeza de onde estava e do quão absurda a realidade podia, num piscar de olhos, tornar-se. Transformar-se…

— O QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI? — gritou, então, em desespero.

— Eu já disse: substituí o seu coração pelo meu.

— O meu… Meu coração… Onde está? Onde está o meu coração, Augusto? — Marcela espremia o tórax com as duas mãos, comprimindo as reentrâncias tateadas na própria pele.

— Está aqui, dentro de mim. Mas ele não funciona… — explicou, secamente, Augusto.

Ou o que parecia ser Augusto.

— E com… Como v… Como você está vivo, então? — Marcela sentia o esmorecer da Lógica em cada palavra e frase que formava.

— De onde eu venho, isso é natural — seu noivo falava em um tom professoral.

— E de onde… De onde você vem? — ela tentou preencher com perguntas os espaços carentes de nexo em sua mente, refugiando-se na dialética das palavras, ao menos.

— De longe. Muito longe.

Exatamente de onde Augusto — ou seja lá o que fosse aquilo — parecia lhe observar.

— Eu… Não entendo…

— É normal isso. Demora um pouco. Mas, logo irá compreender. E sentir — esclareceu.

— Então você… Você não é humano?

— Não.

Marcela decidiu finalmente olhar para o próprio peito, desnudo. Viu as marcas dos cortes; geometricamente uniformes e limpos.

— E eu? Eu sou agora o quê, então? — preocupou-se, voltando a pressionar as mãos sobre as perfeitas incisões visualizadas em seu tórax.

Augusto respondeu, indiferente:

— Uma mulher com um órgão alienígena dentro do peito.

— Mas… E o meu coração?

— Já disse. Está morto.

Marcela analisou o espaço visível abaixo do pescoço do noivo, através da abertura da camisa dele.

— Então por que você o colocou dentro de você? — tentou ainda se manter agarrada a um fio de Lógica.

— Porque é isso o que nós fazemos.

— …“Nós”? — Marcela encarou Augusto.

— Sim.

— Existem outros como você aqui na Terra?

— Muitos outros — revelou.

— E por que… Por que você… Vocês… Vieram pra cá?

— Exatamente para isso… — ele explicou apontando, com o queixo, na direção do peito dela. — Para substituir corações defeituosos. Não são todos os humanos que precisam desta troca. Somente os que ainda não aprenderam.

— Não aprenderam o quê? — Marcela encarou o noivo, verdadeiramente curiosa.

— A amar.

— “Amar”? — estranhou.

— Exatamente…

* * *

Gorro_Metro* Ricardo Gnecco Falco é jornalista, músico, escritor e produtor editorial.

Autor dos livros “Literatividades – Contos Escolhidos(Antologia, 2013) e “Subterfúgio(Romance, 2012); Organizador das antologias “Desencontos(2011) e “Rede de Contos(2010); além de Fundador e Editor-chefe da Seu.Livro.Pronto, produtora especializada em Publicação Independente.

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Contos

LITERATÍFICO

(por Doctor Ross)

RESUMO

Envolvi-me com Ana(1), uma terráquea(2) da Espécie Humana(3); fêmea(4) maravilhosa, porém casada(5). Isto custou não somente o término de seu relacionamento conjugal, mas também o de minha estadia no planeta e, consequentemente, de minha pesquisa científica.

________________________________
 (1) Nome da cobaia.
 (2) Forma de vida pensante, habitante
do planeta Terra, o maior dos quatro
planetas telúricos; o mais denso; 
terceiro mais próximo do Sol, sendo
dentre os oito planetas do Sistema 
Solar o quinto maior. É também 
designado localmente como Mundo ou 
Planeta Azul.
 (3) Espécie terráquea que atingiu 
ao longo de sua evolução o topo da 
cadeia alimentar do planeta, ainda
o ocupando, embora já em declínio.
 (4) Um dos dois gêneros sexuais 
existentes entre todas as diversas 
criaturas no planeta, com exceção da
Espécie Humana moderna, em manifesta 
mutação.
 (5) Status social onde um casal 
(sociedades monogâmicas), ou grupo de 
indivíduos (sociedades não-monogâmicas) 
vivem um tipo de parceria que exige 
exclusividade afetiva e sexual 
do(s)/a(s) parceiro(s)/a(s).

1. INTRODUÇÃO

Todos na Terra já ouviram diversas histórias sobre triângulos amorosos(6). Não há falta de exemplos, no que tange os relacionamentos sociais humanos (mesmo em relacionamentos não sexualmente exclusivistas, chamados pelos terráqueos como Relacionamentos Abertos(7)), nos quais podemos observar uma pertinente — e reveladora — curvatura transgressora dos padrões culturais preestabelecidos pela própria sociedade em questão.

A também chamada traição amorosa(8) existe na raça humana desde os tempos tribais, quando o primeiro Homem Pré-Histórico(9) se afastou silenciosamente dos demais de seu grupo, sentados em volta da Grande Fogueira(10) após uma caçada feroz e, na companhia secreta de uma das formosas(11) fêmeas de seu líder, penetrou não apenas no anonimato da escuridão e das folhas de algum arbusto distante…

Nascia ali, milhares de anos atrás, e por trás daquela longínqua moita em movimento frenético, o primeiro corno(12) da História da Humanidade(13).

Muito se fala a respeito da tendência natural(14) da Espécie Humana, principalmente de seus indivíduos do sexo masculino (ou machos(15)), à busca contínua pelo coito físico, preferencialmente diversificado — no sentido quantitativo — e, claro, pelo inquestionável prazer(16) oriundo de tal/tais ato/s.

Pouco, contudo, se fala a respeito da tendência, também natural, das representantes de sexo feminino (ou fêmeas(17)) desta mesma Espécie que, também continuamente, buscam a mesma coisa, ou seja, o coito sexual(18).

Porém, e é aqui exatamente que reside o ponto central de minha introdução(19) à problemática abordada neste literatífico(20), diferente dos machos, as fêmeas da Espécie Humana demonstram possuir um sentido preferencialmente qualitativo nesta busca, mesmo que diversificado.

________________________________
 (6) Figura geométrica de três pontas 
(triângulo) utilizada principalmente 
nas sociedades monogâmicas para 
ilustrar a ideia da ruptura, geralmente
de forma tácita por uma das partes, 
da parceria previamente formada pelo 
casamento (ver item 5).
 (7) Quando existe um consenso entre 
as partes envolvidas a respeito desse
oba-oba.
 (8) Filha-da-putice pura.
 (9) Espécie Humana antiga; rude, 
peluda e piromaníaca.
 (10) Internet da época.
 (11) Eufemismo científico-romântico.
 (12) Indivíduo de quem outros 
indivíduos riem, até serem surpreendidos
como motivo de risos também, por parte 
de outros indivíduos, que riam até 
serem, igualmente, surpreendidos por 
outros que... Enfim, em comum 
há — sempre — o fator ‘surpresa’.
 (13) Não é muito engraçada.
 (14) https://youtu.be/o_-9zjkm-z4
 (15) Possuem pênis.
 (16) Tê ú dê ó.
 (17) Possuem os pênis.
 (18) Coisa boa.
 (19) Sem conotação sexual, agora.
 (20) Neologismo.

2. REVISÃO DE LITERATURA

Muito também já foi escrito pelo Homem(21) a respeito desta problemática. Desde Shakespeare(22) até Bukowski(23), passando por Flaubert(24), Tolstói(25), Nabokov(26)

No Brasil(27), país em que centralizei minhas pesquisas sobre o assunto, encontrei farta literatura. Destaco a seguir, portanto, alguns nomes e obras(28) locais, como as mais ricas nesta temática:

Dom Casmurro, de Machado de Assis (esta é, sem sombra de dúvida, a obra mais enigmática dentre todas do gênero); Bonitinha, mas Ordinária e Perdoa-me por me traíres, de Nelson Rodrigues (um escritor e dramaturgo de nome fácil, porém de difícil comparação; um terráqueo-autor que se debruçou como nenhum outro sobre a matéria); Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado; além de O Primo Basílio, de Eça de Queirós, e Equador, de Miguel de Sousa Tavares, que não são brasileiros, mas falam/escrevem em um idioma muito parecido com o do Brasil.

________________________________
 (21) Enquanto Espécie Humana.
 (22) Escritor e dramaturgo com um 
sobrenome difícil, como cerca de 95% 
dos demais escritores e dramaturgos
famosos.
 (23),(24),(25),(26) ...Eu avisei.
 (27) Havia escutado que viria a ser o 
país do futuro, mas não pude averiguar 
devido minha partida precoce.
 (28) Todas as obras que serviram de 
estudo para este literatífico estarão 
listadas no item 7, denominado 
‘Referências’.

3. METODOLOGIA

Escolhi a cidade do Rio de Janeiro(29) como base de coleta de dados e, uma vez instalado (em uma casa antiga, no bairro da Lapa(30)) e personificado, assumi a forma humanoide (com base em um exemplar do sexo masculino de um país distante, cuja imagem havia sido disponibilizada na televisão(31), em uma antiga série(32)).

Optei por este modelo humano em específico devido aos seus atributos físicos, cujos traços despontaram em pesquisa prévia empreendida como os mais capazes para uma rápida, completa e bem-sucedida interação sexual com o maior número de espécimes do sexo oposto (já havia pré-definido apenas as fêmeas como público-alvo da pesquisa, sem ainda ter tomado conhecimento da maior dificuldade desta escolha). O estudo ocorreu durante a festa popular denominada Carnaval(33), que acontecia na cidade na semana de minha chegada ao planeta.

Tornei-me, então, uma cópia do terráqueo estadunidense intitulado Doctor Ross(34). Mas, na gíria(35) local, acabei ficando conhecido, mesmo, apenas como “o gringo(36) bonitão”.

Dirigi-me para um bar(37) da famosa região boêmia, onde acabei conhecendo Ana, recém-chegada de um bloquinho(38). Bebemos líquidos fermentados e inflamáveis, que causaram uma ruptura espaçotemporal em nossos corpos e mentes.

Ana me levou para trás do monte formado pelos engradados ali depositados, contendo as garrafas das bebidas consumidas em demasia no estabelecimento. E, mesmo o bar ainda dispondo de muitos litros, Ana pareceu desesperar-se, abrindo parte de minha roupa(39) e buscando obter até mesmo de dentro de meu corpo humanoide algum líquido(40) para tentar satisfazer sua sede incomensurável.

E obteve sucesso. Não apenas acalmou-se por alguns momentos, após ensinar-me funções até então por mim desconhecidas para alguns dos membros constantes de minha mutante massa corpórea (ora flácida, ora rija e pulsante como um coração, e depois esvaindo-se novamente)(41), mas também possibilitou a criação do vínculo(42) que, durante quase toda aquela semana, nos uniria enquanto espécimes “iguais”:

A mútua busca pelo aprimoramento sexual.

A interação oriunda deste primeiro encontro, voraz e revelador, foi a responsável pela posterior elucidação do intrincado desvio comportamental das fêmeas dessa interessante Espécie.

Ana, até o momento final de minha estadia na Terra, nunca me disse que era casada. Nunca sequer mencionou sua situação civil, durante nossos diversos encontros naquela mesma semana. Encontros estes, todos, marcados por ela. Nunca me falou, com palavras, sobre a insatisfação sexual que vivia em seu casamento…

E nunca, até o momento em que meu avatar foi severamente perfurado pelos raivosos projéteis de calibre .40(43) (cuspidos em minha nuca enquanto eu ainda estava dentro dela), revelou que seu esposo, além de ciumento, era policial.

________________________________
 (29) É aconselhável evitar no verão.
 (30) Local boêmio e (bastante) 
propício para este tipo de pesquisa.
 (31) Grande Fogueira da Era Moderna, 
atualmente destronada pela chamada 
Internet.
 (32) Tem também na Internet.
 (33) Período festivo do calendário 
carioca onde ninguém é de ninguém.
 (34) Vide imagem ilustrativa deste 
literatífico; ou campanhas 
publicitárias locais de máquinas 
chiques de café.
 (35) Jeito marrento de falar.
 (36) Todo e qualquer indivíduo que, 
simplesmente, não pareça ser local e
que então, imediatamente, torna-se 
alvo primordial de grupos andarilhos 
de humanos infratores, geralmente 
menores de idade.
 (37) Local onde os terráqueos vão 
para interagirem sem os limites 
pré-estabelecidos pela sobriedade.
 (38) Aglomeração de humanos que 
esfregam seus corpos enquanto cantam,
dançam, suam, mijam, cagam, gozam, 
bebem, babam, vomitam se beijam e 
começam tudo de novo; diariamente, 
durante — no mínimo — três semanas.
 (39) A que fica mais rente à pele é 
a cueca. Algumas fêmeas também usam.
 (40) Chamado de sêmen.
 (41) Devido ao fluxo sanguíneo.
 (42) Conhecido como Tesão.
 (43) Arma de fogo rudimentar, a base 
de queima de pólvora, porém eficiente 
para matar humanos.

4. RESULTADOS

Descobri que as fêmeas da Espécie Humana, doravante chamadas mulheres(44), ao contrário dos representantes machos da mesma casta (ou homens(45)), possuem forte, e inegável, tendência a EVOLUÇÃO.

Ao fixarem, em sua natural busca pelo prazer sexual — é importante que o conceito de prazer e sexo aqui expressos sejam interpretados além da questão da perpetuação da Espécie(46) —, e como meta primordial desta procura/caça, o coito qualitativo(47), as mulheres conseguiram obter, conforme notoriamente registrado nas últimas edições da História da Humanidade, grande avanço como espécime.

Diferente dos homens comuns(48), para os quais um grande número de parceiras (diversas) representa o ápice de seus mais profundos anseios.

________________________________
 (44) São de Vênus.
 (45) São de Marte.
 (46) Procriação.
 (47) Boa foda.
 (48) Típicos.

5. DISCUSSÃO

Isso significa que eu, mesmo não sendo um integrante natural da Espécie Humana, fui (enquanto Doctor Ross) — na elocução socialmente corrente na Terra — um homem ‘gostoso pra cacete(49). O típico, também no jargão terráqueo, ‘cara de safado(50).

Aliás, é bastante significativa a quantidade de nomenclaturas existentes, em todas as linguagens humanas, para os doravante intitulados Machos Alpha(51) dessa peculiar Espécie.

Paradoxalmente, justo os homens ‘mais experientes(52) (lembrem-se: quantitativamente) conseguem, com o tempo, a denominação de Machos Alfa, tornando-se muito desejados pelas mulheres (que, lembrem-se, buscam exatamente o contrário de quantidade).

E precisamente por isso… Se completam! São o resultado de uma equação paradigmática, ilógica e, sobretudo, improvável(53). Em poucas palavras:

Os Seres Humanos são mágicos!

________________________________
 (49) Bom de cama.
 (50) Pica das Galáxias.
 (51) Come-todas.
 (52) Com ‘pegada’.
 (53) Impossível, mas aparentemente 
real. E vice-versa.

6. AGRADECIMENTOS

Agradeço a cada um dos terráqueos que tive a honra que conhecer em mais esta etapa de minha incrível jornada científico-exploratória, empreendida já há tantos milênios, em busca do Conhecimento Absoluto, espalhado pela infinitude tempo-espacial do Universo.

Foram tantas galáxias, inúmeros sistemas, incontáveis planetas, variadas espécies… Sou mesmo um pesquisador muito agraciado por tamanhas oportunidades de estudo que me foram permitidas desfrutar.

Agradeço às bibliotecas públicas terrestres, órgãos governamentais, centros de pesquisas, laboratórios, satélites espiões de comunicação, bancos de dados secretos do Google, Youtube, Pornhub, raves eletrônicas em parques temáticos, festas evangélicas…

Agradeço também pelo incessante apoio oferecido por grandes empresas de refrigerantes; pelos primos da Maçonaria; pela presteza dos Illuminatis; ao pessoal do MST…

E, por último, mas em especial, agradeço a Ana Júlia, sempre tão gentil e receptiva.


7. REFERÊNCIAS

01. Otelo – William Shakespeare (1603)
02. As Relações Perigosas – Choderlos De Laclos (1782)
03. Madame Bovary – Gustave Flaubert (1857)
04. Ana Karenina – Leon Tolstói (1875)
05. O Primo Basílio – Eça de Queirós (1878)
06. Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis (1881)
07. Dom Casmurro – Machado de Assis (1899)
08. O Amante de Lady Chatterley – D. H. Lawrence (1928)
09. Voragem – Junichiro Tanizaki (1931)
10. Diários Íntimos – Anaïs Nin (1932)
11. Trópico de Câncer – Henry Miller (1934)
12. São Bernardo – Graciliano Ramos (1934)
13. Lolita – Vladimir Nabokov (1955)
14. Perdoa-me por me traíres – Nelson Rodrigues (1957)
15. Gabriela, Cravo e Canela – Jorge Amado (1958)
16. Bonitinha, mas Ordinária – Nelson Rodrigues (1962)
17. Pantaleão e as Visitadoras – Mario Vargas Llosa (1973)
18. Hollywood – Charles Bukowski (1989)
19. Os Homens São de Marte, as Mulheres São de Vênus – John Gray (1992)
20. Trilogia Suja de Havana – Pedro Juan Gutiérrez (1998)
21. Equador – Miguel de Sousa Tavares (2003)


8. ANEXOS

8.1 Anexo 1

Acho justo deixar registrado aqui, para efeito informativo, que mesmo com todo acesso, poderes, inteligência, conhecimentos, sabedoria e experiências cósmicas que possuo, não fui capaz de determinar, em definitivo, se Capitu traiu realmente Bentinho(54).

8.2 Anexo 2

Uma última (e sempre válida) dica: Na dúvida, desconfie!(55)

________________________________
 (54) Ver item 7, ‘Referências’: Dom 
Casmurro, de Machado de Assis.
 (55) Velho (e sábio) ditado popular 
de minha galáxia de origem.

* * *

O autor

* Ricardo Gnecco Falco é jornalista, músico, escritor e produtor editorial.

Autor dos livros “Literatividades – Contos Escolhidos” (Antologia, 2013) e “Subterfúgio” (Romance, 2012); Organizador das antologias “Desencontos” (2011) e “Rede de Contos” (2010); além de Fundador e Editor-chefe da Seu.Livro.Pronto, produtora especializada em Publicação Independente.

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Delírium Tropicalis
Contos

Delírium Tropicalis

por Ricardo Gnecco Falco 

Avistou a mesa recém-liberada do outro lado do salão.

O restaurante estava completamente lotado. Assim como todo o centro da cidade; as ruas, calçadas, galerias… Tudo infestado de gente, indo e vindo de ou para algum lugar. O metrô que o trouxera pela manhã; também por inteiro tomado. O corredor do prédio onde trabalhava, o elevador, a portaria…

Lotados.

Era plena hora do almoço. Tinha seguido em fila indiana pelo habitual caminho, rumo ao seu restaurante preferido; onde se lembrava das pilhas de relatórios que enchiam sua sala, tornando-a ainda menor do que já era. Um cubículo sem janela e sem graça, perdido em algum prédio próximo dali.

Também lotado.

Papéis esperando por sua volta. O serviço acumulado aguardando seu retorno do almoço. O ponto eletrônico, quase escondido pelas caixas de papelão amontoadas no canto da parede, registrando com esmero e empáfia seu curto período de liberdade…

De vida.

Aquele, portanto, seria talvez o único momento só dele no dia; que a esta altura, inclusive, já avançava a passos largos rumo a segunda metade. E como voavam os setenta e dois minutos de intervalo contidos entre as duas eternidades por ele experimentadas todo santo dia, repetidamente!

Repetidamente…

Driblando as bolsas dependuradas nas costas das cadeiras do estabelecimento, percorreu com desenvoltura o labirinto formado entre as mesas lotadas de clientes famintos. Gente como ele. Executivos, consultores, empresários… E, sem parcimônia, jogou-se à frente das duas estupefatas moças que já se preparavam para a posse do almejado pedaço de madeira.

Quase delas.

Duas jovens secretárias — uma, inclusive, visivelmente grávida — que, de forma passiva e respeitosa, esperaram o longo e tortuoso final da degustação empreendida pelo casal antes ali sentado, descompassivo ao extremo. Elas já vinham cercando a área ao redor do disputado altar que exaltavam em silêncio com os olhos há bastante tempo, preparando a tomada de posse e, então…

Aquilo.

Uma verdadeira invasão bárbara. O intruso rapaz traçara uma rota inimaginável por entre as apertadas mesas do restaurante lotado, atingindo, com maestria — e antes delas duas —, o solo sagrado sobre o qual fincou sua bandeja, contendo o prato de salada, talheres e a garrafinha de mate natural; da casa.

Nada nem ninguém ali conseguiria ser mais cruel, insensível e maquiavélico do que ele.

As coitadas das moças, indefesas, de bandejas nas mãos e incredulidade nos rostos, não puderam contar nem sequer com os olhares recriminadores das pessoas em volta. Pois, mesmo cercadas por tanta gente, as duas jovens secretárias — e também o bebê dentro da barriga de uma delas — tornaram-se vítimas passivas de um crime sem testemunhas; ou registro. Praticamente, ninguém viu ou percebeu o desenrolar daquela cena; daquela manobra asquerosa, covarde…

Uma perfeita jogada de mestre.

Mesmo que trapaceiro, cruel, insensível… Mas, sim; um mestre. Confortável e hábil na prática do mal. Perverso, nocivo, vil. O rapaz parecia mesmo nem se incomodar com o ato que cometera; com a falta nem de cavalheirismo, mas de humanidade; de respeito. Como se “se dar bem” fosse o lema de sua vida e um glorioso destino pertencesse, indubitavelmente, aos mais “espertos”, como de certo ele se julgava. Demostrava, de fato, estar orgulhoso de si e de suas atitudes.

Desdém.

Mas, mesmo do alto de sua prepotente onipotência, ele não percebera o soturno semblante que o observava de longe. Uma senhora de feições oblíquas que notou o incontrolável risinho surgido no canto da boca dele, após conseguir tomar o lugar daquelas duas pobres moças. Uma irrefreável satisfação que delatava, para a estranha mulher a observa-lo de longe, a falsa inocência de um ato perverso, previamente planejado e agora escondido sob a maquiagem de um rosto quase angelical.

Anjo mau.

Na verdade, quase ninguém notara a presença da velha mulher sentada do outro lado do salão, na ponta oposta ao local da cena recém-ocorrida. A única ali capaz de ultrapassar as camadas daquela camuflagem, rompendo — com seus atentos olhos — os lacres da dissimulação humana; como uma horda de ratos atraída por uma putrefata pele, em um eficiente trabalho de descamação.

Era mesmo uma senhora muito instigante…

Aparentando sabe-se lá qual idade, levantou-se sem chamar atenção. Pegou sua bandeja com o prato já vazio e, arrastando sua longa saia, caminhou, da mesma maneira que se erguera, até as duas moças — ainda paradas, de pé, no centro do salão, à procura de algum lugar onde pudessem, finalmente, agora apenas deglutir o conteúdo já frio de seus pratos.

Apontou-lhes, com um dedo comprido e em riste, a mesa ainda vazia de onde saíra e, na sequência, terminou seu trajeto bem ao lado do jovem executivo, entretido com sua comida saudável e sem se importar mais com o entorno ou com o restante do mundo e das pessoas que o formavam.

A velha ficou em pé ali, parada por um tempo, parecendo esperar por alguma coisa. Então, no exato momento em que as duas secretárias, enfim, arrumavam-se na outra mesa, no extremo oposto do salão, ela se sentou de forma tranquila diante dele.

E os olhos de ambos se encontraram.

Em meio à surpresa daquela inesperada presença, encarando o tenebroso semblante surgido a sua frente, o rapaz parou de mastigar. Os pelos dos braços se arrepiaram e um zumbido começou a ecoar em sua mente, até perceber que o barulho das conversas em volta dele, antes formando um verdadeiro caos sonoro devido a lotação do estabelecimento, foi aos poucos se tornando distante. Mesmo assim, não conseguiu entender sequer uma das várias palavras que a velha então, na mesma ordenação, proferiu repetidamente.

Repetidamente…

Aquelas frases estranhas lhe invadiram as entranhas, ferindo-lhe os ouvidos com o que parecia oriundo de outra época, outra Língua; talvez o Latim, ou algum dialeto já há muito esquecido. O fato é que o tom ameno com que lhe foram ditas aquelas palavras contrastava, e muito, com o profundo brilho recebido do par de olhos ferinos que tinha diante de si, fixados nos seus como se fossem lanças afiadas.

Perdeu a fome. A noção do tempo e espaço. As batidas do coração; audição, tato. Até a cor… Ficou tão pálido e suando tão frio que, ao voltar para o escritório, foi dispensado pelo chefe. Teve febre à noite, sonhou com a figura macabra do restaurante e com o som carregado daquelas palavras, repletas de significados desconhecidos.

Passou algumas semanas sem aparecer no local de que tanto gostava.

Quando deu as caras finalmente por lá, estava bem diferente… Mais magro, bastante abatido, com olheiras gigantescas e um olhar assustado; desesperador mesmo. Tenso, ao extremo. Mas, ao avistar o conhecido salão sempre lotado naquele horário, como pôde confirmar, pareceu se formar novamente um micro sorriso no canto de sua boca.

Da mesma forma que outrora, correu no exato instante em que percebeu uma mesa a vagar, mais adiante. Partiu em disparada, daquela maneira que só ele conseguia tão bem; driblando cadeiras, bolsas e mochilas pelo caminho, até alcança-la. Sentou-se, então, embora com muita pressa.

Demonstrava uma afobação incomum.

Comia tão rápido, que as pessoas em volta chegavam a comentar. Entre uma garfada e outra, olhava em todas as direções, como se um perigo iminente pudesse surgir de qualquer parte, num ângulo de 360 graus naquele salão.

Parecia procurar por algo.

Talvez por causa de seu agir nervoso, o grupo bem ao lado terminou com pressa a rodada de doces e não tardou em se levantar. Assim que as pessoas ergueram as bandejas, o alterado rapaz, ainda mastigando alguma coisa, praticamente saltou de onde estava para cima da nova mesa vaga e, devido ao seu movimento abrupto e ilógico, causou um grande susto nos que dali mal haviam saído, além de outras pessoas mais próximas.

E esta estranha manobra se repetiu ainda por diversas vezes, sempre que outra posição vagava; aumentando assim de forma gradativa o mal-estar entre as pessoas. Rapidamente, a confusão se espalhou por todo o salão. Muitos dos clientes abandonaram seus pratos ainda não terminados e outros deixaram o restaurante às pressas; alguns até mesmo sem pagar pelos produtos consumidos.

Assustados com aquilo.

Um perturbado homem, de aparência doentia, que não conseguia mais ficar sentado apenas em um local. A única exceção era se todas as demais mesas estivessem lotadas. Pois, se alguma vagasse, mesmo que do outro lado do salão, ele imediatamente levantava e saía correndo, desesperado, com a bandeja na mão, até alcançar esta nova posição liberada e nela se rearranjar. Podia estar no meio de uma garfada, ou ter acabado de se sentar; o que fosse…

Ele era impelido sempre a pular para a próxima mesa que vagasse.

Com os sustos causados nas pessoas devido ao seu estranho agir e a consequente debandada dos clientes, mais e mais mesas vazias foram surgindo em seu restaurante predileto e, dessa forma, tornou-se impossível a sua permanência em qualquer uma delas, a ponto de ele não ter conseguido, nem de longe, terminar sua tão sonhada refeição.

Mais um almoço perdido…

Assim como as mesas, ele também acabou por vagar, solitário, em meio a um salão tão vazio quanto a sua vida. Isto lhe colocara em um estado de nervos tão desconcertante que, em suas feições, era possível perceber uma angústia profunda, sufocante.

Exatamente o oposto do que fora visto na última vez, algumas semanas atrás, quando aquele mesmo homem, naquele mesmo salão, parecia estar bem saudável e feliz; realizado com sua ‘grande façanha’. Como se estivesse mesmo contente pela pernada que conseguira dar nas duas coitadas moças, roubando-lhes a mesa e nela de pronto se acomodando, em meio a um restaurante lotado.

Satisfação canalha.

Diferente de agora, pois a amarga expressão no rosto do mesmo rapaz, quase irreconhecível, denotava fadiga extrema. E derrota. Era como se ele fosse obrigado a fazer aquilo. Como se agisse daquela forma insana e atemorizante, involuntariamente. Um cacoete desesperador. Uma sina…

Ou praga.

O fato é que sua até então confortável vida virara do avesso no exato instante em que cruzara com aquela perturbadora figura. Uma velha e soturna senhora. Esta sim, aterrorizante. E nunca mais ele a vira de novo. Somente em sonhos. Pesadelos. Tentava ao máximo não adormecer, mas em determinado ponto era vencido pelo cansaço. Por um latente e cada vez mais incômodo esgotamento.

E então a reencontrava. A pele enrugada e oleosa, esverdeando-lhe todo o semblante. O olhar negro, profundo. Como duas bolas ocas a refletirem o mais perene recanto de escuridão contido em sua avelhantada carcaça. Sem alma, sem vida…

Sem volta.

Era realmente angustiante. Ele passara a tomar diversos remédios; a maioria com tarjas pretas estampadas nas caixas. Para dormir, para acordar, para tentar amenizar as frequentes dores de cabeça e pelo corpo… Até para conseguir ir ao banheiro ele precisava de remédios, agora.

Sentia-se diferente.

Emocionava-se com extrema profundidade, e facilidade. Chorava no banho, com o carinho da água sobre sua pele irritada; ao se deitar, sentindo a maciez do colchão; ao acordar e vislumbrar a beleza dos raios de sol invadindo sua janela…

Por mais um dia a nascer.

Debulhava-se em lágrimas ao assistir qualquer propaganda de margarina na televisão; ao ver um cãozinho perdido na rua; ao presenciar um casal de idosos fazendo compras juntos na farmácia; ao receber mensagens com imagens animadas de ‘bom dia’ nos grupos de WhatsApp…

E nunca mais chegou em casa com o troco das compras feitas na padaria da esquina, que colocava todo santo dia no copinho vazio do mendigo de sua rua, juntamente de um saco repleto de pães, também por ali deixado com as mãos trêmulas e muitas lágrimas a escorrerem de seu rosto combalido.

Ele havia mudado…

Outro dia, no metrô, na volta para casa, teve os distantes pensamentos interrompidos pela movimentação ocorrida dentro do coletivo lotado que, ao parar em uma das estações, acolheu mais alguns viajantes.

Dentre eles, uma moça — visivelmente grávida — de aparência cansada.

Para quem, em meio a uma incontrolável dor a comandar internamente seus músculos das pernas, ele foi, de imediato, impelido a ceder seu lugar…

*  *  *

Gorro_Metro

* Ricardo Gnecco Falco é jornalista, músico, escritor e produtor editorial.

Autor dos livros “Literatividades – Contos Escolhidos” (Antologia, 2013) e “Subterfúgio” (Romance, 2012); Organizador das antologias “Desencontos” (2011) e “Rede de Contos” (2010); além de Fundador e Editor-chefe da Seu.Livro.Pronto, produtora especializada em Publicação Independente.

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Desespelho
Contos

Desespelho

por Ricardo Gnecco Falco

Era estranho…

Beijava bocas sem rostos como se buscasse o antídoto para uma latente dor. Explorava corpos desprovidos de nomes e em suas toscas pilhas me perdia. Trilhava caminhos opostos, impostos; sobrepostos… Chafurdava na lama impiedosa da madrugada, mergulhando de cabeça nos bueiros, poços. Chegava a ser poético, mas insano.

Dor de amor.

Ter de passar por tudo isso, para só então começar a me perguntar: Para quê? Ter que atingir o fundo e só lá embaixo descobrir que fora eu mesma a saltar… Estar dentro de uma situação claustrofobicamente real e então perceber que na realidade fora eu mesma a me trancar ali. Era tudo tão simples. Tudo tão complexo…

Tudo tão contraditório.

O telefone tocava. Vibrava. Roía. Escandalizava… Minha cabeça girava. Sentia o gosto na boca borrada que o espelho em primeiro plano delatava, escondendo a metade do corpo tombado e exaurido sobre a cama, ali atrás… Recompensado. Entorpecido.

Eu queria que tudo fosse diferente.

Que fosse tudo diferente… Olhava-me no espelho daquela espelunca e não me encontrava do outro lado. Na verdade não sabia mais de que lado estava; qual era o lado certo… Onde estava? Quem eu era? Por que fizera aquela tatuagem horrível que a menina do espelho me mostrava? E quem eram os caras deitados na cama, ali atrás? Não…

Não sabia mais quem eu era e nem o que eu fazia.

Aliás, o que eu fazia ali…? Que lugar era aquele? O que eu havia tomado…? Eu não queria ter estado no meio de toda aquela gente. Não sabia se atendia aquele maldito telefone, ou se me escondia. Eu não queria ter estado ali! Humilhada… Usada… Eu só queria que tudo aquilo fosse diferente.

Vil.

Eu estava magra. Engraçado… Sempre quisera ser magra. Passara a adolescência inteirinha lutando contra a balança; me contendo, segurando. Sempre desejara ter um corpo assim. Mas não assim… Sabe quando a gente se olha e não acredita que seja a gente naquela foto? Era assim que eu olhava pra mim naquele espelho… Sempre quisera ter um corpo daquele. Sem nenhuma gordurinha. Mas não daquela forma. Não daquele jeito. O corpo tão sonhado…

Em meio a um pesadelo.

Não sei quanto tempo fiquei olhando para mim mesma, dentro daquela pocilga; diante daquele espelho que parecia quebrado. Aquele maldito telefone se esgoelando… Talvez o tempo necessário para que eu pudesse me reconhecer naquela imagem. Despertar. Sem a maquiagem, a máscara… Assustadoramente real. Encontrar-me. Descobrir-me. Ali, nua, durante um curto período de lucidez.

Ensandecidamente lúcida…

Eram doses pequenas no início. Passavam quase que despercebidas. Imperceptivelmente absorvidas. Depois era o efeito a passar rapidamente. Tão rápido que nem mais se fazia sentir. Não… Não estou falando sobre drogas. Também não estou afirmando que não as usasse. Mas nenhuma delas poderia sequer aproximar-se do efeito que as tais lembranças surtiam em mim. Eu repassava as cenas em minha mente… Uma a uma.

Confusa mente…

Geralmente quando acordava. Era quando a cabeça parecia estar ainda livre do cimento que a insana realidade, no final do dia, como um fardo insustentável, em minha mente incutia. E só nos dias bons isso acontecia. Pois a dor de cabeça, normalmente, já me acompanhava desde quando levantava. Assim como a ressaca, o enjoo, a tontura…

A culpa.

Poesia. Herege; mundana… Mas poesia. Eu abrindo os olhos e encontrando… Ele. Os objetos, assim como as pessoas, passando como se estivessem, todos, em câmera lenta. E m c â m e r a l e n t a. Era sempre ele… Como o vento, seus dedos acariciando meus cabelos, sua voz doce reverberando em meus ouvidos junto ao som da melhor banda de rock do mundo…

O telefone não parava de tocar.

… Salvando-me; resgatando-me daquele matinal momento perdido, onde eu não era eu. Onde o que eu fazia não era eu a fazer. Onde o que eu queria era nada mais querer… Nada além de estar ali, com ele… Nos braços dele novamente. Segura…

Salva.

Era o instante eternizado no fundo de minha mente. A fronteira final de minhas lembranças. O derradeiro território. A essência da minha alma. O meu sonho mais real. O estar sendo; tendo sido, para sempre… Perfeito. O Nirvana…

A mentira.

Brotavam então as cenas que se misturavam à realidade daquele sonho; como se tudo fosse um devaneio irreal; mesmo que irremediavelmente verdadeiro. Os flashes, sussurros, gemidos… Os corpos em cima do meu… Dançando como que enlouquecidos. Enlouquecida. O entra e sai lúdico, sentimentais espasmos cleptomaníacos. Roubando-me de mim mesma; assaltando-me, levando-me… Munidos apenas da arcaica sofreguidão.

E desespero.

Alçando um vôo imaginário, chegava ao fim de mais aquela noite; em silêncio profundo. E do mundo, lá de onde saltara rumo ao meu, vinha o som do telefone que me caçava e enlaçava como a um objeto sem graça, sem vida… “Fria”, um toque me dizia. Lá do fundo… Da superfície plana e macia, a me olhar de cima; superficialmente.

O espelho.

Encarava os olhos que me encaravam e não me viam; que enxergavam apenas a imagem despontada, com extrema apatia. “Frígida?”; “Insensível?…” Como eles ousavam acusar-me enquanto eu não apontava ninguém? Eu não recusava ninguém! Irritava-me isso… Mesmo. Queria fechar os olhos novamente.

Mas eu já era refém…

Tentava sair dali; daquele emaranhado de restos, noites… Daquela fartura de carnes, guimbas, sexos… Daquele vazio compulsivo e gelado. Meu corpo é que já não aceitava mais. Meus olhos, naquele amórfico pedaço de vidro, também não brilhavam mais. Minha mente, disforme, já não me refletia mais…

Estava doente.

Física, mental e espiritualmente. A fuga, remédio ineficaz, já não me levava adiante. Não mais. Queria atirar longe aquele maldito telefone que não parava de tocar, avisando sobre o término de mais um período… Mais um pedaço vendido. Perdido. Não conseguia achar minhas roupas, nem apoio nas paredes que me cercavam. Que conspiravam, me prendiam; delatavam…

Queria era poder ir embora.

O corpo tombado, vencido; o olhar a fixar-se numa cadeira vazia. Solitária como cada um ali dentro daqueles quartos, a esperar por um colo que nunca viria. Sabia muito bem disto… O gosto amargo na boca, a azia… Eu queria muito sair dali, de qualquer jeito; simplesmente levantar e caminhar. Quebrar aquele espelho. Atravessar aquela porta. Sem rumo ou plano. Mesmo sem volta.

Eu só queria ir embora…

* * *


O autor

O autor

* Ricardo Gnecco Falco é jornalista, músico, escritor e produtor editorial.

Autor dos livros “Literatividades – Contos Escolhidos(Antologia, 2013) e “Subterfúgio(Romance, 2012); Organizador das antologias “Desencontos(2011) e “Rede de Contos(2010); além de Fundador e Editor-chefe da Seu.Livro.Pronto, produtora especializada em Publicação Independente.

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Digressão Perigosa
Contos

Digressão Perigosa

por Ricardo Gnecco Falco

Ronaldo era uma pessoa bem distraída…

No entanto, já na saída do túnel, percebeu que havia algo errado. A pista adiante estava completamente vazia, assim como toda a travessia feita pelo interior do imenso vão que deixava para trás.

Fixou o olhar no retrovisor do carro.

Cada segundo passado sem avistar sinal de outro veículo, à frente ou atrás do seu, reconfirmava aquela primeira impressão, responsável pela crescente e involuntária força exercida em seus músculos temporais.

Ronaldo sentiu a vista adaptar-se à claridade do ensolarado dia e, já de posse da certeza de que alguma coisa estranha estava realmente acontecendo por ali, reduziu a marcha do veículo.

Ele só não sabia ainda o que era.

O incômodo vazio, atípico no trânsito de fim de tarde carioca, especialmente naquele ponto da cidade — que ligava a zona sul à uma via expressa —, levou Ronaldo a diminuir ainda mais a velocidade de seu carro; quase parando no meio da rua deserta.

Até que notou o brilho…

Trazendo ainda menos veracidade ao cenário apocalíptico no qual se encontrava, Ronaldo visualizou alguns vaga-lumes próximos ao asfalto, à frente do automóvel, como se desprovidos da informação sobre o horário local. Ou talvez confusos, devido à ausência do costumeiro fluxo de veículos…

Pirilampos diurnos.

Só então distinguiu um carro branco de reportagem, com a logo de uma emissora de TV estampada na lataria, parado mais adiante, à esquerda da pista. Aparentemente, gravavam alguma matéria, pois Ronaldo acompanhou a corrida de um homem, carregando uma câmera de filmagem, e uma mulher, muito bem vestida, com o que parecia ser um microfone na mão. Os únicos seres-vivos avistados por aquelas bandas, além dos estranhos vaga-lumes.

Seria uma reportagem sobre este bizarro fenômeno?

Na verdade, pareciam temerosos. Ambos, cinegrafista e repórter, pararam agachados ao lado do carro da emissora e, se realmente filmavam algo por ali, só poderia mesmo ser alguma coisa bem pequena sobre o asfalto.

Pequenina e perigosa.

O fato é que, ao aproximar-se mais da dupla, mantendo a baixa velocidade de seu veículo, Ronaldo pôde perceber a expressão de espanto que figurava nas feições dos dois, como se o casal sofresse um inesperado ataque por parte dos curiosos pirilampos que, em maior número agora, piscavam bem próximos da atônita dupla.

Contato visual estabelecido.

Ronaldo não conseguiu evitar o encanto recebido daquela repórter. Lindíssima. Os olhos azuis abertos ao máximo, fitando-o; revelando todos os seus segredos num instante de êxtase que parecia sem fim. Tudo em câmera lenta… O olhar fixado nele como se o desejasse mais do que a própria vida. Encarando-o sem empáfia; o hipnotizando de imediato.

Por completo.

Foi quando os dois veículos se emparelharam e, durante a eternidade que um único segundo pode conter, pela janela de seu carro, Ronaldo vislumbrou o quadro mais perfeito dentre todas as imagens que até então julgava conhecer.

Déjà vu.

Sentiu por inteiro o impacto daquele momento. Um insólito elo cuja ruptura, no instante seguinte, queimou-lhe por dentro, criando um mal-estar súbito que Ronaldo imediatamente tentou desfazer.

Inquietação…

Numa busca quase que animalesca, voltou os olhos para todos os retrovisores de seu carro, o de dentro e os de fora, procurando restabelecer o mágico contato que o fizera sentir-se a meio passo da perfeição.

Reencontrou o veículo branco pelo qual acabara de passar somente no espelho esquerdo; pequenino demais para permitir uma boa visualização daquela que fora a responsável pelo instante mais intenso de toda a sua vida. A magia daquele olhar…

Penetrante.

Profundamente alterado, Ronaldo tentou enquadrar o cândido automóvel no retrovisor central de seu carro — maior e menos indigno para aquele glorioso fim. Porém, na dolorosa busca pelo posicionamento ideal de seu corpo, que o permitisse avistar a agora já dona de sua sanidade física e mental, Ronaldo acabou deparando-se novamente com a enorme e negra boca de onde havia sido cuspido para aquele deserto.

O imenso vão.

Num calafrio, percebeu as diversas construções sobre a abismal galeria do túnel, reveladas somente então pelo espelho. Na verdade, casebres. Inúmeros. Sobrepostos; confusos. Tudo misturado e exposto. Pedaços de madeira, concreto, tijolos…

Favela.

E, do mesmo modo que antes, Ronaldo viu fulgurar, agora também dentro daquele pedaço de vidro refletor, o brilho tão característico aos supracitados insetos reluzentes. Uma verdadeira infestação de pirilampos que parecia querer tomar conta de todo o morro atrás do carro, acima da saída do túnel, repleto de pontos luminosos.

Flamejantes marcas destacavam-se na indigente paisagem sobre a meia-lua negra e soturna. Centelhas cintilantes invadiam ruelas e agrupavam-se de modo amorfo e insólito. Um endêmico ataque àquela comunidade menos favorecida. Uma epidemia de chispas na favela. Invasão insana; fulgente. Sobrenatural.

Luzes sobre a escuridão.

Guiou o carro apenas pelo instinto. Dirigiu dezenas de metros sem atentar-se para o que viesse adiante. Olhos vidrados no retrovisor central. Olhava para frente, mas pelo espelho lhe era revelado apenas o que ficara para trás…

Como se não houvesse mais futuro.

Com a razão extinta, à imagem e semelhança dos imperceptíveis cacos de vidro espalhados sobre o banco traseiro do carro, sem ainda conseguir juntar os pedaços daquele verdadeiro enigma, Ronaldo tombou sobre a direção.

Não sentia mais o peso do corpo.

Na verdade, não sentia mais nada. Nada além de saudade. Saudade daquele rosto, de feição misteriosamente angelical; de olhar reluzente e enigmático. Alaranjadas fagulhas em meio a uma imensidão azul. Ensandecidamente belos. A boca entreaberta e inverossímil, na eterna dúvida do movimento. Os lábios vermelhos. A mente divagando…

Sem som; sem tom; centrada.

O momento exato da ultrapassagem. Etéreo instante. O vento sutil a balançar os fios loiros sobre a perfeição da pele alva. A súplica daquele olhar derradeiro… Um toque sublime a percorrer toda sua espinha, num aguçado carinho… A unha feroz cravando-lhe a pele num afago algoz; a ferroada nas costas…

O delírio.

Ronaldo emergiu no interior daquele carro, já quase sem embalo. O som dos estampidos próximos e o calor de rubra intermitência foram seus últimos companheiros. Não viu a barreira de veículos perfilados mais à frente, nem as dezenas de oficiais fardados, fartamente armados, em irracional revide.

Ronaldo perdeu-se no frescor daquele rastro.

Dormiu ninado pelo tilintar metálico dos fuzis em meio ao nauseante hálito de pólvora que invadiu o automóvel, instantes antes de parar na reforçada lataria de uma das viaturas que bloqueavam o trânsito daquela importante e desolada via.

Uma verdadeira operação de guerra.

No noticiário da noite, figurou entre as vítimas fatais de mais aquele confronto urbano. Bala perdida. Uma jovem repórter relatou, emocionada, os momentos de perigo vividos por ela e seu companheiro de equipe. Ambos surpreendidos pelo intenso tiroteio ocorrido entre a polícia e os traficantes invasores que tentaram tomar posse dos pontos de venda de drogas daquela afamada favela.

No carro de Ronaldo foram encontrados — além das diversas perfurações de bala — pedaços de tela, pincéis, cavaletes de madeira, recipientes com tintas de inúmeras cores e uma pasta repleta de folhas de papel, contendo vários desenhos, de diferentes temáticas.

Alguns destes desenhos que estavam no interior do veículo da vítima foram mostrados na reportagem, de cunho extremamente emocional. Dentre os mesmos, destaque especial foi dado pela repórter, visivelmente estarrecida, a uma série de inacabados esboços, sobre os quais o falecido artista parecia estar trabalhando. Todos retratavam a figura de uma bela e imediatamente reconhecível jovem.

De lindos olhos azuis…

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O autor

O autor

* Ricardo Gnecco Falco é jornalista, músico, escritor e produtor editorial.

Autor dos livros “Literatividades – Contos Escolhidos(Antologia, 2013) e “Subterfúgio(Romance, 2012); Organizador das antologias “Desencontos(2011) e “Rede de Contos(2010); além de Fundador e Editor-chefe da Seu.Livro.Pronto, produtora especializada em Publicação Independente.

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