Contos

LITERATÍFICO

(por Doctor Ross)

RESUMO

Envolvi-me com Ana(1), uma terráquea(2) da Espécie Humana(3); fêmea(4) maravilhosa, porém casada(5). Isto custou não somente o término de seu relacionamento conjugal, mas também o de minha estadia no planeta e, consequentemente, de minha pesquisa científica.

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 (1) Nome da cobaia.
 (2) Forma de vida pensante, habitante
do planeta Terra, o maior dos quatro
planetas telúricos; o mais denso; 
terceiro mais próximo do Sol, sendo
dentre os oito planetas do Sistema 
Solar o quinto maior. É também 
designado localmente como Mundo ou 
Planeta Azul.
 (3) Espécie terráquea que atingiu 
ao longo de sua evolução o topo da 
cadeia alimentar do planeta, ainda
o ocupando, embora já em declínio.
 (4) Um dos dois gêneros sexuais 
existentes entre todas as diversas 
criaturas no planeta, com exceção da
Espécie Humana moderna, em manifesta 
mutação.
 (5) Status social onde um casal 
(sociedades monogâmicas), ou grupo de 
indivíduos (sociedades não-monogâmicas) 
vivem um tipo de parceria que exige 
exclusividade afetiva e sexual 
do(s)/a(s) parceiro(s)/a(s).

1. INTRODUÇÃO

Todos na Terra já ouviram diversas histórias sobre triângulos amorosos(6). Não há falta de exemplos, no que tange os relacionamentos sociais humanos (mesmo em relacionamentos não sexualmente exclusivistas, chamados pelos terráqueos como Relacionamentos Abertos(7)), nos quais podemos observar uma pertinente — e reveladora — curvatura transgressora dos padrões culturais preestabelecidos pela própria sociedade em questão.

A também chamada traição amorosa(8) existe na raça humana desde os tempos tribais, quando o primeiro Homem Pré-Histórico(9) se afastou silenciosamente dos demais de seu grupo, sentados em volta da Grande Fogueira(10) após uma caçada feroz e, na companhia secreta de uma das formosas(11) fêmeas de seu líder, penetrou não apenas no anonimato da escuridão e das folhas de algum arbusto distante…

Nascia ali, milhares de anos atrás, e por trás daquela longínqua moita em movimento frenético, o primeiro corno(12) da História da Humanidade(13).

Muito se fala a respeito da tendência natural(14) da Espécie Humana, principalmente de seus indivíduos do sexo masculino (ou machos(15)), à busca contínua pelo coito físico, preferencialmente diversificado — no sentido quantitativo — e, claro, pelo inquestionável prazer(16) oriundo de tal/tais ato/s.

Pouco, contudo, se fala a respeito da tendência, também natural, das representantes de sexo feminino (ou fêmeas(17)) desta mesma Espécie que, também continuamente, buscam a mesma coisa, ou seja, o coito sexual(18).

Porém, e é aqui exatamente que reside o ponto central de minha introdução(19) à problemática abordada neste literatífico(20), diferente dos machos, as fêmeas da Espécie Humana demonstram possuir um sentido preferencialmente qualitativo nesta busca, mesmo que diversificado.

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 (6) Figura geométrica de três pontas 
(triângulo) utilizada principalmente 
nas sociedades monogâmicas para 
ilustrar a ideia da ruptura, geralmente
de forma tácita por uma das partes, 
da parceria previamente formada pelo 
casamento (ver item 5).
 (7) Quando existe um consenso entre 
as partes envolvidas a respeito desse
oba-oba.
 (8) Filha-da-putice pura.
 (9) Espécie Humana antiga; rude, 
peluda e piromaníaca.
 (10) Internet da época.
 (11) Eufemismo científico-romântico.
 (12) Indivíduo de quem outros 
indivíduos riem, até serem surpreendidos
como motivo de risos também, por parte 
de outros indivíduos, que riam até 
serem, igualmente, surpreendidos por 
outros que... Enfim, em comum 
há — sempre — o fator ‘surpresa’.
 (13) Não é muito engraçada.
 (14) https://youtu.be/o_-9zjkm-z4
 (15) Possuem pênis.
 (16) Tê ú dê ó.
 (17) Possuem os pênis.
 (18) Coisa boa.
 (19) Sem conotação sexual, agora.
 (20) Neologismo.

2. REVISÃO DE LITERATURA

Muito também já foi escrito pelo Homem(21) a respeito desta problemática. Desde Shakespeare(22) até Bukowski(23), passando por Flaubert(24), Tolstói(25), Nabokov(26)

No Brasil(27), país em que centralizei minhas pesquisas sobre o assunto, encontrei farta literatura. Destaco a seguir, portanto, alguns nomes e obras(28) locais, como as mais ricas nesta temática:

Dom Casmurro, de Machado de Assis (esta é, sem sombra de dúvida, a obra mais enigmática dentre todas do gênero); Bonitinha, mas Ordinária e Perdoa-me por me traíres, de Nelson Rodrigues (um escritor e dramaturgo de nome fácil, porém de difícil comparação; um terráqueo-autor que se debruçou como nenhum outro sobre a matéria); Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado; além de O Primo Basílio, de Eça de Queirós, e Equador, de Miguel de Sousa Tavares, que não são brasileiros, mas falam/escrevem em um idioma muito parecido com o do Brasil.

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 (21) Enquanto Espécie Humana.
 (22) Escritor e dramaturgo com um 
sobrenome difícil, como cerca de 95% 
dos demais escritores e dramaturgos
famosos.
 (23),(24),(25),(26) ...Eu avisei.
 (27) Havia escutado que viria a ser o 
país do futuro, mas não pude averiguar 
devido minha partida precoce.
 (28) Todas as obras que serviram de 
estudo para este literatífico estarão 
listadas no item 7, denominado 
‘Referências’.

3. METODOLOGIA

Escolhi a cidade do Rio de Janeiro(29) como base de coleta de dados e, uma vez instalado (em uma casa antiga, no bairro da Lapa(30)) e personificado, assumi a forma humanoide (com base em um exemplar do sexo masculino de um país distante, cuja imagem havia sido disponibilizada na televisão(31), em uma antiga série(32)).

Optei por este modelo humano em específico devido aos seus atributos físicos, cujos traços despontaram em pesquisa prévia empreendida como os mais capazes para uma rápida, completa e bem-sucedida interação sexual com o maior número de espécimes do sexo oposto (já havia pré-definido apenas as fêmeas como público-alvo da pesquisa, sem ainda ter tomado conhecimento da maior dificuldade desta escolha). O estudo ocorreu durante a festa popular denominada Carnaval(33), que acontecia na cidade na semana de minha chegada ao planeta.

Tornei-me, então, uma cópia do terráqueo estadunidense intitulado Doctor Ross(34). Mas, na gíria(35) local, acabei ficando conhecido, mesmo, apenas como “o gringo(36) bonitão”.

Dirigi-me para um bar(37) da famosa região boêmia, onde acabei conhecendo Ana, recém-chegada de um bloquinho(38). Bebemos líquidos fermentados e inflamáveis, que causaram uma ruptura espaçotemporal em nossos corpos e mentes.

Ana me levou para trás do monte formado pelos engradados ali depositados, contendo as garrafas das bebidas consumidas em demasia no estabelecimento. E, mesmo o bar ainda dispondo de muitos litros, Ana pareceu desesperar-se, abrindo parte de minha roupa(39) e buscando obter até mesmo de dentro de meu corpo humanoide algum líquido(40) para tentar satisfazer sua sede incomensurável.

E obteve sucesso. Não apenas acalmou-se por alguns momentos, após ensinar-me funções até então por mim desconhecidas para alguns dos membros constantes de minha mutante massa corpórea (ora flácida, ora rija e pulsante como um coração, e depois esvaindo-se novamente)(41), mas também possibilitou a criação do vínculo(42) que, durante quase toda aquela semana, nos uniria enquanto espécimes “iguais”:

A mútua busca pelo aprimoramento sexual.

A interação oriunda deste primeiro encontro, voraz e revelador, foi a responsável pela posterior elucidação do intrincado desvio comportamental das fêmeas dessa interessante Espécie.

Ana, até o momento final de minha estadia na Terra, nunca me disse que era casada. Nunca sequer mencionou sua situação civil, durante nossos diversos encontros naquela mesma semana. Encontros estes, todos, marcados por ela. Nunca me falou, com palavras, sobre a insatisfação sexual que vivia em seu casamento…

E nunca, até o momento em que meu avatar foi severamente perfurado pelos raivosos projéteis de calibre .40(43) (cuspidos em minha nuca enquanto eu ainda estava dentro dela), revelou que seu esposo, além de ciumento, era policial.

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 (29) É aconselhável evitar no verão.
 (30) Local boêmio e (bastante) 
propício para este tipo de pesquisa.
 (31) Grande Fogueira da Era Moderna, 
atualmente destronada pela chamada 
Internet.
 (32) Tem também na Internet.
 (33) Período festivo do calendário 
carioca onde ninguém é de ninguém.
 (34) Vide imagem ilustrativa deste 
literatífico; ou campanhas 
publicitárias locais de máquinas 
chiques de café.
 (35) Jeito marrento de falar.
 (36) Todo e qualquer indivíduo que, 
simplesmente, não pareça ser local e
que então, imediatamente, torna-se 
alvo primordial de grupos andarilhos 
de humanos infratores, geralmente 
menores de idade.
 (37) Local onde os terráqueos vão 
para interagirem sem os limites 
pré-estabelecidos pela sobriedade.
 (38) Aglomeração de humanos que 
esfregam seus corpos enquanto cantam,
dançam, suam, mijam, cagam, gozam, 
bebem, babam, vomitam se beijam e 
começam tudo de novo; diariamente, 
durante — no mínimo — três semanas.
 (39) A que fica mais rente à pele é 
a cueca. Algumas fêmeas também usam.
 (40) Chamado de sêmen.
 (41) Devido ao fluxo sanguíneo.
 (42) Conhecido como Tesão.
 (43) Arma de fogo rudimentar, a base 
de queima de pólvora, porém eficiente 
para matar humanos.

4. RESULTADOS

Descobri que as fêmeas da Espécie Humana, doravante chamadas mulheres(44), ao contrário dos representantes machos da mesma casta (ou homens(45)), possuem forte, e inegável, tendência a EVOLUÇÃO.

Ao fixarem, em sua natural busca pelo prazer sexual — é importante que o conceito de prazer e sexo aqui expressos sejam interpretados além da questão da perpetuação da Espécie(46) —, e como meta primordial desta procura/caça, o coito qualitativo(47), as mulheres conseguiram obter, conforme notoriamente registrado nas últimas edições da História da Humanidade, grande avanço como espécime.

Diferente dos homens comuns(48), para os quais um grande número de parceiras (diversas) representa o ápice de seus mais profundos anseios.

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 (44) São de Vênus.
 (45) São de Marte.
 (46) Procriação.
 (47) Boa foda.
 (48) Típicos.

5. DISCUSSÃO

Isso significa que eu, mesmo não sendo um integrante natural da Espécie Humana, fui (enquanto Doctor Ross) — na elocução socialmente corrente na Terra — um homem ‘gostoso pra cacete(49). O típico, também no jargão terráqueo, ‘cara de safado(50).

Aliás, é bastante significativa a quantidade de nomenclaturas existentes, em todas as linguagens humanas, para os doravante intitulados Machos Alpha(51) dessa peculiar Espécie.

Paradoxalmente, justo os homens ‘mais experientes(52) (lembrem-se: quantitativamente) conseguem, com o tempo, a denominação de Machos Alfa, tornando-se muito desejados pelas mulheres (que, lembrem-se, buscam exatamente o contrário de quantidade).

E precisamente por isso… Se completam! São o resultado de uma equação paradigmática, ilógica e, sobretudo, improvável(53). Em poucas palavras:

Os Seres Humanos são mágicos!

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 (49) Bom de cama.
 (50) Pica das Galáxias.
 (51) Come-todas.
 (52) Com ‘pegada’.
 (53) Impossível, mas aparentemente 
real. E vice-versa.

6. AGRADECIMENTOS

Agradeço a cada um dos terráqueos que tive a honra que conhecer em mais esta etapa de minha incrível jornada científico-exploratória, empreendida já há tantos milênios, em busca do Conhecimento Absoluto, espalhado pela infinitude tempo-espacial do Universo.

Foram tantas galáxias, inúmeros sistemas, incontáveis planetas, variadas espécies… Sou mesmo um pesquisador muito agraciado por tamanhas oportunidades de estudo que me foram permitidas desfrutar.

Agradeço às bibliotecas públicas terrestres, órgãos governamentais, centros de pesquisas, laboratórios, satélites espiões de comunicação, bancos de dados secretos do Google, Youtube, Pornhub, raves eletrônicas em parques temáticos, festas evangélicas…

Agradeço também pelo incessante apoio oferecido por grandes empresas de refrigerantes; pelos primos da Maçonaria; pela presteza dos Illuminatis; ao pessoal do MST…

E, por último, mas em especial, agradeço a Ana Júlia, sempre tão gentil e receptiva.


7. REFERÊNCIAS

01. Otelo – William Shakespeare (1603)
02. As Relações Perigosas – Choderlos De Laclos (1782)
03. Madame Bovary – Gustave Flaubert (1857)
04. Ana Karenina – Leon Tolstói (1875)
05. O Primo Basílio – Eça de Queirós (1878)
06. Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis (1881)
07. Dom Casmurro – Machado de Assis (1899)
08. O Amante de Lady Chatterley – D. H. Lawrence (1928)
09. Voragem – Junichiro Tanizaki (1931)
10. Diários Íntimos – Anaïs Nin (1932)
11. Trópico de Câncer – Henry Miller (1934)
12. São Bernardo – Graciliano Ramos (1934)
13. Lolita – Vladimir Nabokov (1955)
14. Perdoa-me por me traíres – Nelson Rodrigues (1957)
15. Gabriela, Cravo e Canela – Jorge Amado (1958)
16. Bonitinha, mas Ordinária – Nelson Rodrigues (1962)
17. Pantaleão e as Visitadoras – Mario Vargas Llosa (1973)
18. Hollywood – Charles Bukowski (1989)
19. Os Homens São de Marte, as Mulheres São de Vênus – John Gray (1992)
20. Trilogia Suja de Havana – Pedro Juan Gutiérrez (1998)
21. Equador – Miguel de Sousa Tavares (2003)


8. ANEXOS

8.1 Anexo 1

Acho justo deixar registrado aqui, para efeito informativo, que mesmo com todo acesso, poderes, inteligência, conhecimentos, sabedoria e experiências cósmicas que possuo, não fui capaz de determinar, em definitivo, se Capitu traiu realmente Bentinho(54).

8.2 Anexo 2

Uma última (e sempre válida) dica: Na dúvida, desconfie!(55)

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 (54) Ver item 7, ‘Referências’: Dom 
Casmurro, de Machado de Assis.
 (55) Velho (e sábio) ditado popular 
de minha galáxia de origem.

* * *

O autor

* Ricardo Gnecco Falco é jornalista, músico, escritor e produtor editorial.

Autor dos livros “Literatividades – Contos Escolhidos” (Antologia, 2013) e “Subterfúgio” (Romance, 2012); Organizador das antologias “Desencontos” (2011) e “Rede de Contos” (2010); além de Fundador e Editor-chefe da Seu.Livro.Pronto, produtora especializada em Publicação Independente.

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